quinta-feira, 7 de junho de 2012

[Ano II, No. 18 - 2012] MARE NOSTRUM

 “Navigare necesse; vivere non est necesse” - Pompeu

POEMA
AlmaAzul, O Meu País Azul (desativado)

Procuro-te e só vejo o farol de ti.
- Onde te escondes, meu mar?

 Claude Monet (francês, 1840-1926), Impressão: nascer do sol, c. 1872 - 49,5 x 65 cm. Museu Marmottan Monetz, Paris.

Monet era fascinado com a cintilação da água, a névoa subindo lentamente nos prelúdios da manhã e pequenas embarcações balouçando sem heroísmos na superfície cintilante do mar. Ele nos dá uma visão íntima, caseira, do mar, que conhecia bem, pois passara sua infância no porto de Le Havre. O seduzia especialmente o jogo de luz sobre a água, e trabalhou arduamente para desenvolver uma técnica que pudesse captar esse efeito em pintura. Bem poucos deixarão de concordar em que Monet conseguiu transmitir, de forma admirável, a aparência da aurora se derramando sobre as águas no quadro acima. 

Na época em que essa pintura foi exposta, em 1874, entretanto, os críticos zombaram dessa pintura e de outras expostas com ela, apelidando o movimento de "Impressionismo" e destacando esse quadro e seu título como totalmente ridículos.

Talvez essa atitude seja ainda mais surpreendente se atentarmos para o fato de que, já em inícios do século XIX, Turner tinha realizado brilhantes estudos de tempestades marítimas em que toda a definição de forma se perdia nas ondas agitadas e espumantes e nas nuvens em torvelinho.

O MAR NA POESIA PORTUGUESA



recipiente para guardar o mar
walter hugo mãe

nunca sabotei a vontade de
deus, e vejo ainda
o inferno, um qualquer
poema mais difícil de coleccionar

POEMA
Helder Moura Pereira

Este risco fundo a negroazul
Meu vento de luz, alegria
de folhas no rosto, estampas
na pele. Âncora que me desenham
entre os cabelos loiros
do antebraço, magia de um aparo
escrevendo mais
do que as palavras.
O mar é este azul
de sangue, os olhos
que o negam recuam
para um ombro cortando a linha
da montanha e o som
do barco recolhe a forma
da ilha. Onde mar e barco
se confundem é o meu vento,
nele se esconde o traço
da idade, o rosto
a recompor-se de passarem anos.
Por mim
nunca hás-de ter a paixão, sombra
que passas ao lado
do meu vento, eu saberei
distinguir. A tinta
transparente
faz o desenho, os raios
alteram as cores e por esquinas
se vai medindo o tempo
da luz, por vezes
o rito da noite traz a fadiga,
o tudo por tudo
do corpo, na palma da mão
começo a ver
o retrato, o parado andar
de quem ficou travado no vento
do mar e me vê como se eu fosse
a salvação de seus dias.
Temos algumas horas
por este final de maio
e depois nem a despedida
vamos conseguir. A minha vida
na cidade é este risco o
fundo a negroazul um pouco
a seguir ao cotovelo, por ele serei
capaz de imaginar
que me queres. Este mar
não vai parar na minha pele, este vento
começa a negar-me os olhos.

O Mar Agita-se, como um Alucinado
Alberto de Oliveira, Bíblia do Sonho

O Mar agita-se, como um alucinado:
A sua espuma aflui, baba da sua Dor...
Posto o escafandro, com um passo cadenciado,
Desce ao fundo do Oceano algum mergulhador.

Dá-lhe um aspecto estranho a campânula imensa:
Lembra um bizarro Deus de algum pagode indiano:
Na cólera do Mar, pesa a sua Indiferença
Que o torna superior, e faz mesquinho o Oceano!

E em vão as ondas se lhe enroscam à cabeça:
Ele desce orgulhoso, impassível, sem pressa,
Com suprema altivez, com ironias calmas:

Assim devemos nós, Poetas, no Mundo entrar,
Sem nos deixarmos absorver por esse Mar
— Pois a Arte é, para nós, o escafandro das Almas!

Luta
Antero de Quental, Sonetos

Fluxo e refluxo eterno...
João de Deus.

Dorme a noite encostada nas colinas.
Como um sonho de paz e esquecimento
Desponta a lua. Adormeceu o vento,
Adormeceram vales e campinas...

Mas a mim, cheia de atracções divinas,
Dá-me a noite rebate ao pensamento.
Sinto em volta de mim, tropel nevoento,
Os Destinos e as Almas peregrinas!

Insondável problema!... Apavorado
Recúa o pensamento!... E já prostrado
E estúpido á força de fadiga,

Fito inconsciente as sombras visionárias,
Enquanto pelas praias solitárias
Ecoa, ó mar, a tua voz antiga.

A Máquina Fotográfica
José Carlos Ary dos Santos

É na câmara escura dos teus olhos
que se revela a água
água imagem
água nítida e fixa
água passagem
boca nariz cabelos e cintura
terra sem nome
rosto sem figura
água móvel nos rios
parada nos retratos
água escorrida e pura
água viagem trânsito hiato.

Chego de longe. Venho em férias. Estou cansado.
Já suei o suor de oito séculos de mar
o tempo de onze meses de ordenado;
por isso, meu amor, viajo a nado
não por ser português mal empregado
mas por sofrer dos pés
e estar desidratado.

Chego. Mudo de fato. Calço a idade
que melhor quadra a minha solidão
e saio a procurar-te na cidade
contratada violenta negativa
tu única sombra murmurada
única rua mal iluminada
única imagem desfocada e viva.

Moras aonde eu sei. É na distância
onde chego de táxi.
Sou turista
com trinta e seis hipóteses no rolo;
venho ao teu miradoiro ver a pista
trago a minha tristeza a tiracolo.

Enquadro-te regulo-te disparo-te
revelo-te retoco-te repito-te
compro um frasco de tédio e um aparo
nas tuas costas ponho uma estampilha
e escrevo aos meus amigos que estão longe
charmant pays
the sun is shinning
love.

Emendo-te rasuro-te preencho-te
assino-te destino-te comando-te
és o lugar concreto onde procuro
a noite de passagem o abrigo seguro
a hora de acordar que se diz ao porteiro
o tempo que não segue 
o tempo em que não duro
senão um dia inteiro.

Invento-te desbravo-te desvendo-te
surges letra por letra, película sonora,
do sentido à vogal do tema à consoante
sem presença no espaço sem diferença na hora.
És a rota da Índia o sarcasmo do vento
a cãibra do gajeiro o erro do sextante
o acaso a maré o mapa a descoberta
num novo continente itinerante.

Carta ao Mar
António Gomes Leal, Claridades do Sul 

Deixa escrever-te, verde mar antigo,
Largo Oceano, velho deus limoso,
Coração sempre lyrico, choroso,
E terno visionario, meu amigo!

Das bandas do poente lamentoso
Quando o vermelho sol vae ter comtigo,
- Nada é mais grande, nobre e doloroso,
Do que tu, - vasto e humido jazigo!

Nada é mais triste, tragico e profundo!
Ninguém te vence ou te venceu no mundo!...
Mas tambem, quem te poude consollar?!

Tu és Força, Arte, Amor, por excellencia! -
E, comtudo, ouve-o aqui, em confidencia;
- A Musica é mais triste inda que o Mar!

A ESPERA
Rui Zink 

Naquela época eu tinha medo do silêncio e não percebia que não havia mal nenhum em ficar em silêncio a meio de uma conversa, ou mesmo em não haver conversa entre duas pessoas que vão lado a lado.O silêncio é como o mar. Envolve-nos e pode submergir-nos, se não soubermos lidar com ele, mas também pode embalar-nos, se perdermos o medo e nos deixarmos ir. Em ambos, mar e silêncio, nada pior do que esbracejar de pânico.

TURNER, O MODERNO IMPRESSIONISTA

Figura 1: Joseph Mallord William Turner (inglês, 1775-1851). Auto-retrato, c. 1799. Óleo sobre tela, 74,3 x 58,4 cm. Tate Britain.

Responsável por um trabalho artístico considerado revolucionário para sua época - a primeira metade do século XIX -, Turner foi um apaixonado pelos efeitos da luz sobre a paisagem. A paixão pela luz e pelas cores vibrtantes tornaram-se evidentes em telas onde a forma e o espaço emergem filtrados pela memória e pela imaginação do artista. Turner soube alias, de maneira inconfundível, uma sensibilidade exaltada à técnica ímpar e à coragem de afrontar os padrões tradicionais da arte de seu tempo. Precursor do Impressionismo (nas palavras de Renoir, Monet e outros), embora sua pintura seja principalmente romântica, suas paisagens - auroras, crepúsculos, mares tempestuosos e veleiros em chamas - são expressões de uma apaixonado diálogo do homem com a natureza. 

Na tela abaixo, totalmente envolvido pela mistura de memória e realidade, imaginação e sonho, Turner transporta seu sentimento para a pintura, utilizando todas as técnicas sob seu comando e retratando toda a substância das figuras para substituí-las por formas aéreas e vaporosas, banhadas de luz.

Figura 2: Uma cena veneziana, 1843. Óleo sobre tela, 61 x 92 cm. National Gallery, Londres. 

AS FUNDAMENTAÇÕES TEÓRICAS

Turner sabia o que estava buscando. Desde que deixara de se interessar pelas vistas topográficas, pesquisava teorias cromáticas, e não foi por acaso que a apresentação de um dos seus primeiros trabalhos, Temporal no lago Buttermere, em Cumberlend, com vista parcial de Cromackwater (cuja imagem não encontrei para anexar), apresentado em 1798, estivesse acompanhada pela citação das Estações (1726-30), de Thompson:

Entretanto, refratado por aquela nuvem do Oriente
Pairando sobre a terra o grande arco etéreo
Eleva-se imenso: e desdobra todos os tons
Nas proporções exatas, desde o vermelho
Até o violeta se esbate contra céu
Aqui, terrível Newton, as nuvens se desfazem em água
E desdobram perante os olhos conhecedores
A composição da luz, que tu revelaste
A partir do complexo labirinto branco. 

Torna-se evidente que o caminho seguido por Turner foi resultado de uma opção em que procurava fundamentações teóricas de alto nível intelectual. Um exemplar do tratado de Goethe sobre as cores, anotado por ele, e os blocos de estudos estão repletos de combinações de cores completamente abstratas.

Turner não se preocupava com minúcias e refinamentos; adotava, por vezes, cores violentas e complementares para atingir um grau máximo de luminosidade, a ponto de dissolver a perspectiva. Antecipando certas técnicas dos impressionistas, demonstrava as possibilidades de enxergar através das grandes massas de luz e sombras. Conseguiu assim estabelecer uma síntese entre a tradição da paisagem alemã e a grandiosidade universal do classicismo.

A linha evolutiva de seus trabalhos, por outro lado, não revela retornos ou retomadas de posições. Seu estilo aperfeiçoou-se constantemente, combinando lições aprendidas com artistas do passado e seus próprios estudos da natureza, onde desenvolveu uma técnica capaz de registrar cada efeito possível de luz. Dessa forma, seus desenhos nunca surgem como um meio para reproduzir a realidade, mas como ideias gráficas onde a imaginação se sobrepõe a tudo. Em seus trabalhos, assim como o desenho é uma exigência da forma, a cor é uma qualidade da forma. A constante utilização da aquarela – que incorpora por suas qualidades técnicas, a brilhante transparência da luz – conseguiu trazer para muitas obras a óleo do artista inigualável fluidez.

Figura 3: Chuva, Vapor e Velocidade. 1884. Óleo sobre tela, 91 x 121,8 cm. 

A MEMÓRIA E O TEMPO DA PAISAGEM

Criando um espaço que não é real nem ilusório, Turner acrescentou outra dimensão à pintura de paisagens. Na verdade, trata-se de um espaço articulado a partir da memória. O mesmo pode ser dito do tempo, que é determinado na tela a partir de uma brevidade proporcional à intensidade do fenômeno manifestado no momento. Turner se apoiava numa aguda observação atmosférica local, e retinha na memória os mínimos detalhes de forma e matiz. Consultado a respeito de suas tempestades, metereologistas europeus confirmaram que elas correspondem fielmente à verdade dos fatos. Exemplo dessa imediata observação é  Chuva, Vapor e Velocidade (figura 3), colhida ao vivo quando o artista viajava num trem. A respeito do quadro, Kenneth Clarck (English Romantic Artists - Constable, Blake & Turner, especial para History Channel, citado em Modern Painters) conta uma anedota bastante elucidativa, que atesta bem a intensidade da sensação que permeia a tela:

"A senhora Simon Ficara muito surpreendida quando um senhor de idade e de aspecto simpático, que estava sentado à sua frente no trem, colocou a cabeça para fora da janela durante uma chuva torrencial e só a retirou ao fim de nove minutos aproximadamente. Escorrendo água, aquele estranho homem permaneceu com os olhos fechados cerca de quinze minutos. A senhora Simon, ardendo de curiosidade, colocou também sua cabeça para fora da janela, ficando igualmente encharcada. Mas não negou ter passado por uma experiência inesquecível. Podemos imaginar sua alegria quando, um ano depois, viu Chuva, Vapor e Velocidade exposto na Academia Real. E, ao ouvir alguém dizer, com ar de troça: 'É mesmo coisa de Turner, não é verdade? Quem é que já viu uma associação tão ridícula?' respondeu: 'Eu vi!'"

Muitos trabalhos de Turner, produzidos de memória a partir de suas viagens e experiências, resultam na impressão de algo que possivelmente não poderia ter sido visualizado. Mas a sensação advém basicamente do excesso de elaboração posterior.

Figura 4: Tormenta de neve: o exército de Aníbal atravessando os Alpes, 1812. Óleo sobre tela, 145 x 236 cm. Tate Gallery, Londres. O quadro mostra um tema constante na obra de Turner: a fragilidade humana ante as forças da natureza. A própria composição é um redemoinho. 

A SUBORDINAÇÃO DA PERSPECTIVA À LUZ

Outro aspecto de capital importância para a compreensão da obra de Turner é a utilização que ele faz da perspectiva. Ao encarar a luz como um elemento puro e absoluto, e o espaço no qual os objetos estão contidos como algo ilimitado, livre de restrições, o artista subordinou a perspectiva a maiores ou menores graus de luminosidade, indicando a distância entre os objetos pelo grau de concentração de luz, quebrando linhas e tornando difusos objetos sólidos, a ponto de absorvê-los nas profundezas infinitas da atmosfera.

A luz constitui o núcleo da pintura de Turner. Procurando manter vivida a sensação de um momento de profundo contato com a natureza, o artista soube transferir para suas telas uma autêntica impressão da realidade.

Turner submetia cada objeto a uma constante mudança de luminosidade, analisando rapidamente as diferentes flutuações da atmosfera e tratando cada paisagem, cada variação, com uma técnica mestra, apesar das massas volumosas e dos corpos sólidos que pediam um tratamento mais estático. Embora o objetivo principal e final de Turner fosse a luz pura, ela sempre foi examinada indiretamente, a partir das modificações que ela própria conferia aos objetos.

John Ruskin (Cf.: KIRSH, Adam. Lifting the Veil: J.M.W. Turner and John Ruskin. In: New York The Sun) escreveu sobre a luminosidade na obra de Turner, mostrando que ela é exatamente oposta à de Rembrandt. Enquanto o artista holândes tende a um colorido descendente, onde a luz é tratada indiretamente, para ser dissolvida na sombra, o colorido em Turner é ascendente, sendo resolvido por meio de uma progressiva purificação dos vários graus de luz, atingindo finalmente uma luz que tudo absorve. Como consequência lógica de sua pintura, Turner coloca o problema da luz pura e absoluta como um tema abstrato que, à medida que é mais efetivamente formulado, transcende as limitações de uma convenção naturalista.

Essa busca ansiosa de efeitos luminosos tem poderosa repercussão na forma: a linha torna-se progressivamente menos importante e as cores tendem a fundir-se. Apesar do uso da memória e do exaustivo estudo cromático realizado pelo artista, a primeira fonte para suas preocupações com a luz deve ser procurada nas impressões que trouxe das paisagens dos Alpes suíços, onde a grandiosidade da natureza emerge numa atmosfera rarefeita e cristalina, o que enfatiza a transparência e a pureza da luz, sintetizando todos os detalhes.

O intenso envolvimento com a natureza, que tomou forma nos trabalhos realizados sob inspiração dos Alpes suíços, assumiu papel menos "obsessivo" a partir de 1819, quando Turner viajou para a Itália. A partir dessa data, ele passa a caminhar sob a influência da paisagem mediterrânea, onde a natureza aparece de forma calma, repleta de luminosidade.


Figura 5:  Slavers Throwing Overboard the Dead and Dying: Typhoon Coming On, 1840. 54,5 x 35,5. Coleção Pública. Para uma discussão do impacto desta pintura no movimento abolicionista cf.: GILROY, Paul Gilroy. O Atlântico Negro - modernidade e dupla consciência. Ed. 34).   

TURNER, O SUBLIME

Turner visitou a Itália pela primeira vez em 1819. Ao chegar a Veneza, encontra no colorido dos antigos mestres locais o próprio paradigma de sua concepção de pintura.

Na verdade, já fazia algum tempo que Turner procurava retratar vistas da Itália, a maioria delas copiadas de telas de Cozens ou Lorrain. Mas, ao visitar a Itália, adquire uma nova visão dessas paisagens, tomando consciência, ao contrário de seus predecessores (portadores de uma visão formal e crepuscular), do calor e do brilho da luz. Nos três meses que permaneceu em Roma, Turner realizou cerca de 1500 trabalhos, entre estudos e aquarelas.

A partir desse momento, suas paisagens parecem nadar num mar de luz. As sombras se tornam escarlates e amareladas, as árvores, cor de lápis-lazúli, e as figuras passam a flutuar numa neblina repleta de calor. Esses quadros assinalam a visão específica que caracteriza a obra de Turner.

De outro lado, a viagem á Itália acentuou o elemento anticlássico de sua obra. O artista deixa de imitar os mestres que admira e desiste totalmente de suas pretensões de alcançar uma construção clássica. Nesse aspecto, sua visita a Veneza foi fundamental: lá encontrou uma arquitetura mais próxima de sua sensibilidade que, além disso, podia pintar diretamente, sem ter que recorrer às idealizações, e diante da qual sua imaginação poderia ser liberta de forma completa e absoluta.

 Após sua viagem à Itália, a obra de Turner assume características que o aproximam mais do Romantismo. O lirismo passa a permear todas suas telas, não somente na escolha temática, mas também no estilo e técnica: a cor vai sendo deformada e sensibilizada até a sublimação total, tornando a matéria inerte um incorpóreo e inefável veículo de sensações.O pintor passa, também, a buscar um novo conceito de "sublime" que passa a substituir a pintura "espiritual" e a noção clássica de sublime. Constable (1776-1837) questionou esse conceito na obra de Turner, pois acreditava que, ao buscar a luz em sua plenitude, o artista opunha-se a qualquer conceito de "moderno". Apesar disso, Turner teve, posteriormente, sua obra qualificada como "naturalmente sublime".

As pinturas inspiradas na viagem do artista à Itália revelam a influência de Canaletto (1697-1768) e Guardi (1712-1793). E o estudo dos efeitos luminosos conduziu Turner às fontes básicas da pintura veneziana, cujo maior representante é Ticiano (1473/90-1576). Desde então, o ar e os luminosos vapores apoderaram-se de suas telas, tornando sua pintura impalpável. A paisagem deixou de existir como tema em si mesmo, tornando-se pretexto para puros ritmos de luz, transparências e reverberações, atingindo um esplendor máximo. O "sublime natural" tinha então atingido o seu clímax, e a sua pesquisa de luminosidade tornava-se mais definida.

Figura 6: Incêndio nas Câmaras dos Lordes e dos Comuns, 1835. Óleo sobre tela, 92 x 123 cm., Philadelphia Museum of Art.

A esse período de sua obra, que vai até 1840, correspondem obras como Fogo no Mar (1834), uma tela teatral e dramática onde ele mostra um tema constante em sua obra: a fragilidade humana ante às forças da natureza. As cores da composição lembram recursos estilísticos do Barroco. Aliás, são tão convincentes e poderosos os quadros de Turner e tão adequados os meios pelos quais ele descreve tempestades e ondas gigantescas que se pode pensar não existir outra forma de representar pictoricamente o caos de uma tempestade. E também Incêndio nas Câmaras dos Lordes e dos Comuns (figura 6) e O Navio-Escravo. Caracterizadas por extremado romantismo, essas obras garantiram a imortalidade ao artista.

Turner, porém, contrariava cada vez mais o gosto público da época. A preferência generalizada pelas imagens claras, bem definidas e sólidas de Constable, obrigava-o a tomar consciência  da hostilidade que tinha de enfrentar. Mas não cedeu: reagiu violentamente ao desprezo popular por suas conquistas estéticas, tornando suas imagens cada vez mais rarefeitas - até que se transformaram num tipo de figuração abstrata, preciosa e "sublime".

Em plena maturidade artística, Turner faz com que cada forma se quebre no movimento da luz, que cada volume seja dispersado e dissolvido na atmosfera flutuante e impalpável de uma luminosidade que já se transformara num mito e num símbolo desse próprio mito.

Por outro lado, os trabalhos desse período refletem a angustiada vida particular do pintor, plena de excentricidades: já totalmente afastado do convívio social, Turner chegou a se esconder sob outra identidade.

Escrevendo no Modern Painters sobre o "mistério de Turner", John Ruskin afirma, a respeito dos trabalhos do artista: "[alguns homens] vêem mais que os outros, mas a consequência de sua capacidade de ver mais é que eles percebem que não podem ver tudo; e quanto mais intensa é essa percepção, mais a quantidade de coisas que eles vêem parcialmente multiplica-se sobre eles; e seu prazer pode vir finalmente a se constituir em duelar com a nebulosidade dessa visão, separando de alguma maneira o que para eles tornou-se comparativamente comum, mas que é, talvez, o sumo e a substância de tudo o que as outras pessoas vêem na coisa, , enquanto as maiores sutilezas, as sombras e os detalhes não podem ser absorvidos nem pela mais acurada visão".

Figura 7: Ulysses zombando de Polyphemus – Odisséia de Homero. 1829, 132.5 x 203 cm - National Gallery, London. Considerada por muitos sua obra-prima.

O PRIMEIRO MODERNO

As obras do período final da vida de Turner não trouxeram uma contribuição imediata para o desenvolvimento da arte. Os chamados esboços - que mais tarde foram amplamente estudados e onde o artista chegou muito próximo das pinturas abstratas - não eram ainda conhecidos, só sendo exibidos a partir de 1906. As pinturas expostas eram demasiado distantes da tímida descrição de cenas para influenciarem a pintura inglesa da época. Além disso, eram demasiado irracionais para causarem algum efeito na França.

Em 19 de dezembro de 1851 o pintor morre, deixando um legado artístico inestimável, onde a imagem  é o resultado de um primeiro e íntimo contato com a realidade. Como ele demonstra, esse contato não constitui uma forma inferior de consciência, sendo capaz de preencher totalmente os valores da forma. E, na medida que a percepção é também consciência, ela pode ser treinada e desenvolvida pelo contínuo exercício de rememoração de uma imagem a partir do fato percebido. Por essa razão é que Turner superou as origens emotivas e contemplativas da arte de sua época, chegando a um conceito de pintura que, além de preencher totalmente os ideais românticos, colocou a pesquisa como um caminho fundamental para que seja atingido um contato íntimo e "real" com a natureza. E é por isso que ele pode ser considerado o primeiro pintor "moderno" da Europa.

Turner antecipou aspectos formais e emotivos que depois caracterizariam os impressionistas franceses, como eles mesmos reconhecem numa carta assinada por Renoir, Pissarro, Sisley e outros, enviada a Sir Coutes Lindsay. Esses artistas afirmam então que seu escopo seria "trazer a arte de volta a uma observação exata da natureza, devotando-nos passionalmente a reproduzir a forma em movimento tal como o fenômeno fugaz da luz". E acrescentam: "não podemos esquecer que formos precedidos nesse caminho pelo grande mestre da pintura inglesa, o ilustre Turner".

PARA SABER MAIS

- Turner, Forer Xerbar (erm espanhol);
- O mar e os barcos na pintura de William Turner, Jaguar, ao ritmo de cada um;
- Turner in Heilbrunn Timeline of Art History, The Metropolitam Museum of Art (em inglês).


Il Ritorno d'Ulisse in Patria - Prologue; Les Arts Florissants, de Claudio Monteverdi. Direção soberba de William Christie. A fragilidade humana lamenta a situação da humanidade e é hostilizada pelo Tempo, a Fortuna e o Amor, que se vangloriam de seu poder sobre os destinos humanos.


PEQUENO LIVRO DAS TRADUÇÕES MARÍTIMAS

POESIA
Voglia Portella, Quaderni di Volia, 1983

Mare Mostro,
Torna ad offrire se stessi nella albori!
Mostro di piano terra!
Torna ad offrire se stessi l'alba preziosa!

Il mare immenso
Mi spinge a stare a galla,
Move me
Vegetazione del fiume sono inutili.

La natura mi obbliga a vagare,
Mi commuove
Tocca la mia anima di gioia.

Il terreno intorno a casa mia
Loro sono più belli
Da giorni
Quello che mi è stato permesso di vedere
Volti che mai visto prima.

Tutto è più bello;
Tutto è più bello,
E la vita è la gratitudine:

Questo è il mio punteggio - Proiezione, Mare Mostro--
Diventata la mia casa signorile.

POEMA
Voglia Portella, trad. de Nina Rizzi

Monstro do mar,
Vem e oferece a ti mesmo no preciso alvorecer!
Monstro da Planície!
Vem e oferece a ti mesmo no precioso alvorecer!

O mar grandioso
Impele-me a flutuar,
Move-me,
Vegetação inútil num rio sou eu.

A natureza impele-me a vaguear,
Comove-me,
Comove minha alma com júbilo.

As terras ao redor de minha morada
São mais belas
desde o dia
Em que foi-me concedido ver
Rostos que nunca vira antes.

Tudo é mais belo;
Tudo é amis belo,
E a vida é gratidão:

Este meu hóspede - Projeção, Monstro do Mar -,
Torna minha casa majestosa.


Song
T.S. Eliot

The moonflower opens to the moth,
The mist crawls in from sea;
A great white bird, a snowy owl,
Slips from the alder tree.

Whiter the flowers, Love, you hold,
Than the white mist on the sea;
Have you no brighter tropic flowers
With scarlet life, for me?

Canção
T.S. ELIOT, Obra completa, vol. I - Poesia; trad. Ivan Junqueira

A boa-noite se abre à mariposa,
A neblina de rastros vem do mar;
Uma ave branca e uma nívea coruja
Do amieiro se desgarram devagar.

Trazes na mão, Amor, flores mais brancas
Do que a branca neblina sobre o mar;
Não terás flores tropicais mais vivas
E de alma em fogo para me entregar?

APRÈS LE DÉLUGE
Arthur Rimbaud, Illuminations, 1873-1875

 Aussitôt que l'idée du Déluge se fut rassise,
     Un lièvre s'arrêta dans les sainfoins et les clochettes mouvantes et dit sa prière à l'arc-en-ciel à travers la toile de l'araignée.
     Oh ! les pierres précieuses qui se cachaient, − les fleurs qui regardaient déjà.
     Dans la grande rue sale les étals se dressèrent, et l'on tira les barques vers la mer étagée là-haut comme sur les gravures.
     Le sang coula, chez Barbe-Bleue, − aux abattoirs, − dans les cirques, où le sceau de Dieu blêmit les fenêtres. Le sang et le lait coulèrent.
     Les castors bâtirent. Les "mazagrans" fumèrent dans les estaminets.
     Dans la grande maison de vitres encore ruisselante les enfants en deuil regardèrent les merveilleuses images.
     Une porte claqua, et sur la place du hameau, l'enfant tourna ses bras, compris des girouettes et des coqs des clochers de partout, sous l'éclatante giboulée.
     Madame*** établit un piano dans les Alpes. La messe et les premières communions se célébrèrent aux cent mille autels de la cathédrale.
     Les caravanes partirent. Et le Splendide-Hôtel fut bâti dans le chaos de glaces et de nuit du pôle.
     Depuis lors, la Lune entendit les chacals piaulant par les déserts de thym,  − et les églogues en sabots grognant dans le verger. Puis, dans la futaie violette, bourgeonnante, Eucharis me dit que c'était le printemps.
     − Sourds, étang, − Écume, roule sur le pont, et par dessus les bois; − draps noirs et orgues, − éclairs et tonnerres − montez et roulez; − Eaux et tristesses, montez et relevez les Déluges.
     Car depuis qu'ils se sont dissipés, − oh les pierres précieuses s'enfouissant, et les fleurs ouvertes ! − c'est un ennui ! et la Reine, la Sorcière qui allume sa braise dans le pot de terre, ne voudra jamais nous raconter ce qu'elle sait, et que nous ignorons.


APÓS A INUNDAÇÃO
Arthur Rimbaud; trad. Nina Rizzi

    Tão logo a fúria da inundação se desvaneceu, uma lebre parou junto ao trifólio e as balouçantes campânulas e ergueu sua súplica através da teia de aranha ao arco-íris.
   As pedras preciosas se ocultavam e já as flores começavam a vicejar.
   O quarteirão dos açougueiros surgia na rua principal e embarcações eram impelidas para o mar, abarrotadas de pilhas como as pinturas.
   O sangue jorrava na vida do Barba Azul, nos matadouros, nos circos, onde o sinal de Deus tornava as janelas lívidas. O sangue e o leite jorravam.
   Os castores se punham a construir. Cafeteiras deixavam escapar fumaça no bares.
   Na grande residência de janelas ainda melhoradas, crianças em pranto contemplavam imagens comoventes.
   Uma porta batia estrepitosamente. Na praça do povoado a criança volteava os braços e era compreendida pelos cataventos e os campanários de toda parte, sob o tamborilar da chuva.
   A senhora X instalava um piano nos Alpes. Missas e primeiras comunhões eram celebradas nos cem mil altares da Catedral.
   As caravanas partiam. E o "Hôtel Splendide" era edificado no caos do gelo e da noite polar.


UMA TRADUÇÃO DE AMERS DE SAINT-JOHN PERSE 
Bruno Palma [leia artigo do tradutor, aqui]

Estrofe IX, 5, 2

... Celle qui s’épanche à mon épaule gauche et remplit l’anse de mon bras,
gerbe odorante et lâche, non liée (et très soyeuse fut  l’histoire, a mon toucher, de
ces tempes heureuses),
Celle qui se repose sur sa hanche droite, la face close contre moi (et de
grands vases ainsi voyagent, sur leur affût d’un bois très tendre et sur leur selle de
feutre blanc),
Celle qui s’anime dans le songe contre la montée des ombres (et j’ai tendu le
tendelet contre l’embrun de mer et la rosée nocturne, la voile est éventée vers le
plus clair des eaux),
Celle-là, plus douce que douceur au coeur de l’homme sans alliance, m’est
charge, ô femme, plus légère que chargement d’épices, d’aromates —- semence
très précieuse et fret incorruptible au vaisseau de mes bras.

que, em português, ficou assim:

... Aquela que se derrama em meu ombro esquerdo e enche a enseada do
meu braço, feixe odorante e lasso, não atado (e tão sedosa foi a história, a meu tato,
dessas têmporas venturosas),
Aquela que repousa sobre a anca direita, a face cerrada contra mim (e
grandes vasos assim viajam, em seu suporte de um lenho muito tenro e em sua sela
de feltro branco),
Aquela que se anima no sonho contra o remontar das sombras (e estendi o
tendal contra o borrifo do mar e o rocio noturno, a vela é enfunada para o mais
claro das águas),
Esta, mais doce que doçura ao coração do homem sem aliança, me é carga, ó
mulher, mais leve que carregamento de espécies, de arômatas — semente muito
preciosa e frete incorruptível no barco dos meus braços.

Cena final de E la Nave Va (Itália/ França, 1983), de Federico Felillini.



[2012, Ano V, Edição 549]

3 comentários:

Ana Pérola Veloso disse...

ávida de mergulho.

Anônimo disse...

O mar sempre tão presente para os portugueses, afinal o que seria de suas conquistas, de seus bravos homens e a sua patria sem ele. Grandiosa postagem, abraços

Anônimo disse...

"Prove que você não é um robô" escrevendo aqui alguma coisa
à altura do que você leu...

Parabéns, Nina Rizzi!, por clamar
no deserto pela Beleza, como
fizeram Keats e Shelley (e Byron) no mesmo espaço e tempo;
eles, entretanto, viveram numa época propícia, enquanto você
espalha a Beleza numa Idade Má,
em Era de Indiferença etc... embora o Espírito que a anima seja tão claro e estranho e forte quanto o olho do furacão que Turner tentou pintar como se mirasse na perturbação da eternidade (a velha palavra), entre mármores afundados no mar e a miséria - que continua - da existência. [FERNANDO MONTEIRO]