domingo, 20 de maio de 2012

[Ano II, No. 17 - 2012] ABSOLUTO, 1


Deus nunca desmente.

Deus mede a espora pela rédea, e não tira o estribo do pé de arrependido nenhum [A hora e a vez de Augusto Matraga]

Deus é paciência. O contrário é o diabo.

... o diabo é as brutas; mas Deus é traiçoeiro! Ah, uma beleza de traiçoeiro - dá gosto! A força dele, quando quer... me dá o medo pavor. Deus vem vindo: ninguém não vê. Ele faz é na lei do mansinho - assim é o milagre. E Deus ataca bonito, se divertindo, se economiza.

... a gente precisa de fazer quando Deus manda, depois quando o diabo pede se perfaz.

Deus come escondido, e o diabo sai por toda a parte lambendo o prato.

Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há de a gente perdidos no vai-vem, e a vida é burra... Tendo Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois, no fim dá certo. Mas, se não tem Deus, então, a gente não tem licença de coisa nenhuma!

É preciso de Deus existir a gente, mais; e do diabo divertir a gente com sua dele nenhuma existência. O que há é uma certa coisa - uma só, diversa para cada um - que Deus está esperando que esse faça.

- João Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas [fragmentos esparsos]

Eva Uviedo [Poemacolagem]

Talvez olharíamos mais as estrelas
Se não fossem essas luzes
Na altura dos nossos olhos.

- Ana Pérola Pacheco, Sentidos

aos pós
William Gomes, Se sente.

hoje mais cedo recebi uma carta vinda do Sri Lanka,
de uma freira desesperada por uma pulseira de miçangas
dizia que a vida estava boa mas tinha pressa
de se ver no espelho tão nua quanto morta
dizia também que era viúva em segredo
de um operário da fábrica de cimento 
que morreu de infarto com impurezas no peito
um dia me visitaria, em meados de janeiro ou fevereiro
assim que não aguentasse mais comer pão velho de mosteiro.

Arthur Bispo do Rosário (sergipano, 1909?-1989), A cama de Romeu e Julieta


A POESIA DE IRACEMA MACEDO


Arthur Bispo do Rosário
( Poema dedicado a João Marcelino)


Me prendam que estou 
me transformando
em rei em verso em canto
Que venham as virgens em cardumes
Que venham moinhos e gigantes
Por onde passo as coisas
hesitam por seus nomes
tal a minha fúria
Vestem-me de louco
mas sou apenas
um arquiteto de retalhos


Enquanto outros acendem
lampiões estradas pontes
acendo reinos dulcinéias cartas
Bordo delírios em panos
De tudo que acho perdido
teço um manto e um sonho
Chamam-me de louco
Que venham as virgens em cardumes
Sou apenas
um arquiteto de miragens




O Horto


Juazeiro, Juazeiro
o peso de tanta gente
vou levando na ladeira
imagens estilhaçadas
cacos de virgem Maria
santos decapitados 
braços e pernas de gesso
corações de cera
partes que foram curadas 
estilhaços de uma guerra
mulheres vestidas de preto
dentro de mim vou levando
cruzes pesadas, romeiros
e uma capela de Santa Clara
acesa dentro do peito




Poeta perdendo a prece


Que poderá o poema nesta noite pouca
em que muito frágil e antiga
tento em vão cobrir-me com uma túnica?


Que poderá o poema contra o frio
contra a nudez batendo sobre as coisas
e minha cara refletida sobre o vidro?


Que poderá ainda
contra o rigor habitual dos edifícios
contra pequenos abismos e misérias


Que poderá contra meu ódio
contra minha inveja
e a manhã que virá com luz fortíssima?




Oração a São Miguel Arcanjo


Se houver perigo esta noite,
preciso que me abrigues


Não te fies no delicado trato 
que tenho com os monstros


Eles mentem
Nós mentimos, todos mentem


Se houver perigo esta noite,
não penses que sou forte
só porque vivo só
e conheço toda a ilha
e domino palavras e com elas
construo armas e escudos


Se houver perigo,
preciso que sejas meu pai,
forte, amigo,
afastando com a espada os inimigos


Preciso que pises sobre o meu terror
como pisarias mansamente
sobre um demônio adormecido




A menina fantasma do internato


Diante das coisas mais óbvias
estanco
como se fossem abismos
Não aprendi a dar os passos decisivos
Tenho desejado corredores longos na penumbra
como nos antigos colégios
É noite, escuro
lá fora os fios da cidade não me alcançam
nem as profissões, nem o futuro
Quero ficar no colégio eterna interna
feito uma menina morta aos treze anos
feito Laura Vicunha, feito as velhas madres
Quero ficar guardada nos retratos para sempre
E com meu corpo de vento
descer e subir escadas
brincar no jardim
E à noite
quando todos partem
e as freiras dormem
ter um colégio
e um mundo todo para mim
*

FRA ANGELICO E A ARTE COMO SERVA DE DEUS
                                              Por Nina Rizzi

Figura 1: A Anunciação (c. 1430/32). O quadro foi pintado, originalmente, para a Igreja de São Domingos, em Fiesole. Na predela (base do quadro), estão descritas cinco histórias da Virgem: Esponsais, Visitação, Adoração dos Magos, Apresentação no Templo e Morte. Óleo sobre madeira, 192 x 192 cm. Museu do Prado, Madri.

Que obra de arte é o homem: tão nobre no raciocínio;
tão vário na capacidade; em forma e movimento,
tão preciso e admirável, na ação é como um anjo;
no entendimento é como um Deus; a beleza do mundo;
o exemplo dos animais.
- Fragmentos de renascença, William Shakespeare.

Em 1447, alcança a glória: a convite do Papa Nicolau V vai para Roma pintar, com a ajuda de Benozzo Gozzoli (1420-1497), os seis grandes afrescos da Capela Nicolina, no Vaticano.

Em Roma, dedica-se à evocação dos episódios da vida de Santo Estêvão e São Lourenço, mártires da Igreja primitiva. O papa, que havia recuperado sua autoridade ecumênica contra o separatismo das Igrejas nacionais, agora se propõe, por meio da arte de Fra Angelico, a mostrar a todos os que vão à sua corte a venerável antiguidade da Igreja, suas tradições mais remotas e a espécie de sobrevivência ao tempo que lhe é inerente.

Os afrescos do Vaticano pintados por Fra Angelico são considerados as obras “latinas” do artista. Há nelas amplitude de formas, compreensão da história e, sobretudo, da dignidade humana. Uma dignidade que merece esse nome na medida em que o homem, suprema criação de Deus, participa, pelo menos em grau mínimo, de Sua Luz deslumbrante.

Por volta de 1449, Fra Angelico é nomeado prior do Convento de São Marcos, em Florença, depois de recusar o arcebispado da cidade. O priorato, porém, não o afasta da pintura, e dessa época datam suas cenas da vida de Cristo, realizadas num tom narrativo, com forte acento popular. Nessa época a arte de Fra Angelico, após uma visão de meditação, parece demonstrar a necessidade de retornar às fontes mais simples, às verdades mais elementares do catecismo. É uma pintura para ser “lida” e compreendida por aqueles que pouca familiaridade têm com a arte e suas grandes expressões. É a pintura capaz de impressionar mais vivamente os sentidos da gente humilde. A linguagem do pregador popular que surge das imagens aproxima-se da linguagem que os dominicanos utilizam cada vez mais em seus diálogos com o povo.

Em obras como A Fuga do Egito e O Massacre dos Inocentes evidencia-se a mudança de rumo de Fra Angelico. Já não são os espíritos cultivados os destinatários da mensagem. Sua pintura recupera a função religiosa tradicional, mas nem por isso perde o refinamento que o artista soube imprimir à sua produção interior.

Direta ou indiretamente, participa, no final da vida, da ação política que o Convento de São Marcos vinha desenvolvendo em favor dos Médici, seus benfeitores. Ao fazê-lo, está abrindo caminho apara a mais plena explosão artística do Renascimento, que ocorrerá pouco depois de sua morte (1445). Não só suas profundas análises das relações entre luz e cor, entre formas e espaços ficariam como lição. Também seria lição seu atento estudo da natureza.

O INCIPIENTE RENASCIMENTO


Figura 2 e 3: Miniaturas do Missal 558 (c. 1430)O Missal compreende aproximadamente trinta miniaturas. A ilustração à esquerda mostra a Virgem protetora dos dominicanos; à direita A Vocação de Pedro e AndréMuseu de São Marcos, Florença

Uma das criações mais notáveis do pintor é constituída pelas trinta Miniaturas do Missal 558, uma expressiva manifestação de habilidade no gênero. Fazendo parte dessas miniaturas, a Vocação de Pedro e André (figura 3) mostra um tom ingênuo dotado de aguda sensibilidade e de original interpretação. O fundo de águas verdes e a linha do horizonte colocada obliquamente são recursos que conferem ao todo uma espécie de ondulação. Uma discreta e cândida claridade lunar, que se projeta sobre as águas e banha toda a cena, cria um clima de encantamento. Cristo é apresentado numa imagem pouco convencional: é um jovem imberbe que oferece sua mão aos dois homens que se aproximam num barco num barco. Esse Cristo juvenil traz consigo uma leveza renovadora. Não há dor em sua figura. Tudo nele revela o ideal de juventude e de um cristianismo puro.


Figura 4: O Juízo Universal (c. 1430/32). A pintura deve ter sido realizada para ornamentar o encosto de um banco utilizado pelo sacerdote durante a celebração. A execução da obra contou com o auxílio de vários colaboradores, entre os quais, Zanobi Strozzi. Óleo sobre madeira, 105 x 210 cm. Museu de São Marcos, Florença. 

Em O Juízo Universal (figura 4) e em A Anunciação (figura 1) surgem outras facetas de Fra Angelico. O Juízo apresenta uma composição complexa e uma visão grandiosa, apesar de impregnado de piedosa ingenuidade. A essa pintura atribui-se a qualidade de um expressivo sermão sobre o evento final terrível. Ainda prevalece nessa obra um simbolismo medieval; falta nela a síntese renascentista. O solene semicírculo no alto, constituído em duas alas por santos, baliza um Cristo que julga os mortais. Essa concavidade espacial alude claramente à imensa esfera do Divino. Dela se desprendem os anjos que, com suas trombetas, anunciam aos mortais o momento do Juízo. Abaixo, e à direita, contrastando com a serena paz e majestade das alturas, sobe um túmulo rochoso, se atropelam os réprobos. Estão a um passo do Inferno, que o artista apresenta em vários níveis. Ali os corpos lacerados se entrelaçam na tentativa de repelir as implacáveis chamas. No nível inferior, dentro de uma espécie de caldeirão infecto, o Diabo, de cuja boca escorre o sangue dos condenados, apodera-se dos corpos e os devora. À sua volta, algumas cabeças se debatem, mas são impelidas para as profundidades pelos subalternos infernais. Embora a representação do mal e do horror não seja o forte de Fra Angelico, nesse detalhe da obra suas imagens revelam certo poder impressionista. À esquerda encontram-se os Eleitos, que, extasiados, elevam suas preces ao Céu, para logo após dançar com os anjos, sobre um terreno que sobe docemente e culmina nas muralhas rosadas que anunciam o Paraíso. Ao fogo, aos tormentos infernais se opõem, no extremo oposto da cena, as luzes, a leveza, a música.


Figura 5: A Anunciação (detalhe, c. 1433/34). Óleo sobre madeira, 160 x 180 cm. Museu Diocesano de Cortona.

Em A Anunciação (figura 1), Fra Angelico desenvolve o tema “jardim” não somente na cena principal, como também na guarda inferior do quadro. O pórtico e os arcos constituem demonstração clara da arquitetura renascentista, mas nas colunas há certa sutileza gótica. Mais uma vez está comprovado o caráter de transição da pintura e Fra Angelico: não desprendida do passado, nela já está o presente, ainda que de maneira tímida. Toda a obra está impregnada de doçura mística. Retomando o tema, não muito mais tarde, Fra Angelico executa uma Anunciação (figura 5), em que aceita magnificamente o novo terreno renascentista. Nesta última obra, os elementos sobrenaturais são atenuados e a realidade é aceita com maior coerência. Nela desaparece o raio de luz dourada que provém do céu e atravessa a cena. A ação se desenvolve mais diretamente entre o anjo e a Virgem.


Figura 6: Imposição do Nome ao Batista (c. 1434/35). Exaltado pelo abade e crítico de arte Luigi Lanzi como o quadro "mais alegre e acabado" de Fra Angelico. Óleo sobre madeira, 26 x 24 cm. Museu de São Marcos, Florença.

Na Imposição do Nome ao Batista (figura 6), nota-se uma tripla profundidade e um grau de realismo consideravelmente maior do que nas obras anteriores de Fra Angelico. Os gestos são variados e as figuras começam a apresentar uma definição pessoal que as afasta da uniformidade e do anonimato. A imagem possui uma encantadora intimidade, que se prolonga na pureza do céu e no verdor ondulado do jardim. Mas as luzes, de emanação divina, percorrem o espaço vindo do infinito e ao infinito retornando.


Figura 7: Descida da Cruz (detalhe, c. 1436/38). A obra, realizada para a sacristia da Santa Trindade e iniciada pelo artista Lorenzo Monaco (italiano, 1370-1425), acusa um aprofundamento na poética religiosa de Fra Angelico. 

Na Descida da Cruz (figura 7), Fra Angelico mostra uma ampla orquestração de elementos. A obra está dividida pelas duas escadas que se apoiam na cruz, e os grupos de figuras se distribuem de maneira sábia. A comoção dos que participam da cena é devota e profunda, e ao mesmo tempo sóbria e contida. Não há gestos de dor marcantes, nem expressões melodramáticas. A paisagem tem uma enorme profundidade, e se à esquerda são vistos edifícios monumentais, à direita surgem a desolação rochosa e as montanhas baixas.
Essa obra, assim como toda sua produção, é fruto de verdadeira inspiração. Afirma-se que o artista jamais retocava as suas pinturas, e que estas se mostram tal como saíram na primeira intenção da paleta do beato (WARBURG, 1992:43). O pintor pensava que a sua mão era guiada pela mão de Deus, de tal modo que ele, um pobre mortal, não se sentia em condições de modificar aquilo que o Supremo Criador queria que fosse feito de uma determinada maneira.


Figura 8: Crucifixo com São Domingos. Afresco, Museu de São Marcos, Florença.

As crucificações de Fra Angelico figuram entre suas obras mais memoráveis. Crucifixo com São Domingos (figura 8) constitui um verdadeiro apelo ao recolhimento e à penitência. O terreno ermo e o céu de um azul indefinível fazem o observador chegar à ordem transcendental. Aos pés da cruz, abraçado à madeira onde escorre o sangue de Cristo, surge um São Domingos intensamente comovido. O azul cósmico, combinado ao vermelho do sangue e ao branco imaculado, possui uma força impetuosa. Já na Crucificação e Santos (figura 9), o motivo reaparece reelaborado e ampliado à sua máxima capacidade. Os santos, dispostos num palco cênico vazio, são numerosos. No fundo, um céu avermelhado, escuro, estende-se imenso sobre o horizonte baixo. As cruzes são três e delas pendem homens injustiçados. Mas as duas laterais foram colocadas obliquamente, como que a olhar para o Cristo.

Figura 9: Crucificação e Santos, (c. 1441/42). Afresco. Museu de São Marcos, Florença.

A GLÓRIA, AMÉM

Os dias de Fra Angelico terminam em 18 de fevereiro de no Convento de Santa Maria, em Roma, onde dois anos antes havia sido encarregado pelo Papa Nicolau V de pintar seu próprio gabinete e a Capela de São Nicolau no Vaticano.

Seu papel artístico e histórico está cumprido. O grande artista do primeiro Renascimento interpretou na pintura o clima de uma Roma papal onde o humanismo se instalara plenamente. Com Nicolau V, magníficos edifícios foram construídos, centenas de livros antigos e preciosos traduzidos, e outros tantos foram escritos. Se em sua juventude o Beato soube interpretar no Convento de Fiesole o candor alegre e espiritual pregado por Frei Giovanni Dominici, e depois, no Convento de São Marcos, em Florença, soube traduzir o clima criado pelos Médici, na Capela Nicolina, em Roma, pintando os protomártires, Fra Angelico se tornou sensível aos novos ventos que sopravam na corte papal.

O túmulo de Fra Angelico encontra-se em Roma, na Igreja de Santa Maria della Minerva. Na lápide estão inscritas palavras que, de certo modo, lhe fazem justiça, mas que, ao mesmo tempo, constituem um sarcasmo: “Mereceu a glória mais por sua caridade que por sua arte”. É inegável que seus contemporâneos souberam apreciá-lo. Mas nessas palavras suspeita-se a minimização de sua glória verdadeira, a de pintor e de grande artista do Renascimento.

A lenda urdida em torno de sua vida o apresenta como homem de santa vida, feliz serenidade e simplicidade de temperamento (DIDI-HUBERMAN, 1995). Mas isso não deve diminuir a grandeza do artista Fra Angelico. Na verdade, ele expressa uma síntese insuperável da transição do espiritualismo medieval à mundanalidade do Renascimento. Não foi definitivamente um homem da Idade Média, nem do mundo renascentista. Viveu num tempo em que o primeiro debatia-se em estertores agônicos, e se prolongava em não poucas consciências, e o segundo entrava com passos vacilantes, mas cada vez mais seguros à medida eu iam prosseguindo, na arena da arte e da vida social. Entregue inteiramente à pintura, Fra Angelico talvez não percebesse totalmente essa forma de mudança que estava se processando ante seus olhos, no decorrer da sua própria vida. Mas sua obra é um testemunho – entre muitos – de um momento fascinante da aventura humana. O século estava nascendo, uma sociedade que, enfim, começava a compreender que o destino do homem não devia identificar-se forçosamente com a mortificação, com a frugalidade, com a vida austera e recolhida. Os burgueses que prosperavam nas cidades italianas já tinham compreendido que o mundo podia ser alegria e não necessariamente uma semipenumbra de temores como pretendia a Idade Média.

PARA SABER MAIS:

ALBERTI, Leon Battista. Da Pintura. (Trad. Antônio S. Mendonça). Campinas: Unicamp, 1989.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Fra Angelico: Dissemblance & Figuration. (Trad. Jane Marie Todd). Chicago: Chicago University Press, 1995.
FAHY, Everett. Florentine Paintings in the Metropolitan Museum: An Exhibition and a Catalogue. The Metropolitan Museum of Art Bulletin, v. 29, no. 10 (June, 1971). Disponível em:
http://www.metmuseum.org/pubs/bulletins/1/pdf/3258561.pdf.bannered.pdf
PANOFSKY, Erwin. Iconografia e Iconologia: uma introdução ao estudo da arte da Renascença. In: _____. Significado nas artes visuais. São Paulo: Perspectiva, 1979
WARBURG, Aby. Arte del retrato y burguesia forentina. Domenico Ghirlandaio en Santa Trinità; Los retratos de Lorenzo de Me-dici y de sus familiares. In: BURUCÚA, José Emilio. (Org.). Historiade las imágenes e historia de las ideas. La escuela de Aby Warburg. Buenos Aires: Centro Editor de América Latina, 1992.


Figura 10: Anunciação (predela, c. 1433/34). Óleo sobre madeira, 160 x 180 cm. Museu Diocesano de Cortona.


Acreditava tanto em Deus
Que amou
E se doía em adeus.
- Ana Pérola Pacheco, Sentidos

POEMA
Vittoria Colonna (italiana, 1490-1547)

Quando io riguardo il mio sí grave errore,
confusa al Padre Eterno il volto indegno 
non ergo allor; ma a te, che sovra il legno
per noi moristi, volgo il fedel core. 

Scudo delle tue piaghe e del tuo amore
mi fo contra l' antico e novo sdegno, 
tu sei mio vero prezïoso pegno,
che volgi in speme e gioia ansia e timore. 

Per noi su l' ore estreme umil pregasti, 
dicendo: - Io voglio, o Padre, unito in cielo
chi crede in me - sí ch' or l'alma non teme. 

Crede ella e scorge (tua mercé) quel zelo 
del quale ardesti sí, che consumasti 
te stesso in croce e le mie colpe insieme. 


POEMA
Tradução de Pedro Garcez Ghirardi

Quando me oprime o peso do pecado,
Confusa, o olhar não ergo ao Criador;
Levanto o coração fiel, Senhor,
A Vós, por nosso amor crucificado.

Escudo em Vossas chagas tenho achado
Contra a ira divina e seu rigor;
Segura estou em Vós de que o temor
Em esperança e paz será mudado.

Em Vossa última noite suplicastes:
"Une, ó Pai, lá nos céus, quem em mim crê".
Foi por nós Vossa prece derradeira.

Sem medo, pois, e (glória a Vós) com fé
Minh' alma louva o zelo em que abrasastes
Com Vossa vida, minha culpa inteira.

*

SONETO
Michelangelo Buonarroti (italiano, 1475-1564); trad. de Jorge de Sena

Forçoso é que a piedade enfim me venha,
pra que d’alheias culpas mais não ria,
seguro em meu valor, sem outro guia,
alma perdida que de si desdenha.
Não sei que outra bandeira me mantenha
não vencedor, mas salvo da porfia
com que o tumulto adverso me seguia,
se não é Teu poder que me sustenha.
O carne, ó sangue, ó lenho, ó dor extrema!
Justo por vós se torne o meu pecado
do qual nasci e os pais que foram meus.
Só Tu és bom: socorra tão suprema
piedade o meu predito iníquo estado:
tão perto a morte, e ainda tão longe Deus.
*

POESIA DE SANTA TERESA D'ÁVILA
(Espanhola, 1515-1582); 
Tradução de Mauro Gama 


Só co fogo o ferreiro estende
à idéia cara e seu melhor lavor,
nem sem fogo um artista o ouro, em fervor,
no seu mais alto grau afina e rende:

nem mesmo fênix outra vez se prende
se antes não arde. E eu, se morrer no ardor,
mais claro espero entre esses me repor
que a morte acresce, e o tempo não ofende


BUSCANDO A DEUS

Alma, buscar-te-ás em Mim.
E a Mim buscar-me-ás em ti.

De tal sorte pôde o amor,
Alma, em mim te retratar,
Que nenhum sábio pintor
Soubera com tal primor
Tua imagem estampar.

Foste por amor criada,
Bonita e formosa, e assim
Em meu coração pintada,
Se te perderes, amada,
Alma, buscar-te-ás em Mim.

Porque sei que te acharás
Em meu peito retratada,
Tão ao vivo debuxada,
Que, em te olhando, folgarás
Vendo-te tão bem pintada.

E se acaso não souberes
Em que lugar me escondi,
Não busques aqui e ali,
Mas , se me encontrar quiseres,
A Mim, buscar-me-ás em ti.

Sim, porque és meu aposento,
És minha casa e morada;
E assim chamo, no momento
Em que de teu pensamento
Encontro a porta cerrada.

Busca-me em ti, não por fora…
Para me achares ali,
Chama-me, que, a qualquer hora,
A ti virei sem demora,
E a Mim buscar-me-ás em ti.


POEMA

Já toda me entreguei e dei
e de tal modo hei mudado,
que é meu amado para mim,
e eu sou para meu amado.

Quando o doce caçador
me acertou e deixou rendida,
nos braços do amor
minha alma ficou abatida.

E cobrando nova vida
de tal jeito hei mudado
que é meu amado para mim,
e eu sou para meu amado.

Feriu-me com uma flecha
empeçonhada de amor,
e minha alma ficou feita
uma com seu Criador,

já não quero outro amor
pois a meu Deus tenho-me dado,
e meu amado é para mim,
e eu sou para meu amado.
*

POESIA DE SOR JUANA INÉS DE LA CRUZ 
(Mexicana, 1648?-1695); Tradução de Anderson Braga Horta

CUANDO MI ERROR CON TU VILEZA VEO

Cuando mi error con tu vileza veo
contemplo, Silvio, de mi amor errado,
cuán grave es la malicia del pecado,
cuán violenta la fuerza de un deseo.

A mi mesma memoria apenas creo
que pudiese caber en mi cuidado
la última línea de lo despreciado,
el término final de un mal empleo.

Yo bien quisiera, cuando llego a verte,
viendo mi infame amor, poder negarlo;
mas luego la razón justa me advierte

que sólo se remedia en publicarlo:
porque del gran delito de quererte,
sólo es bastante pena, confesarlo.


QUANDO MEU ERRO EM TEU OPRÓBRIO VEJO

Quando meu erro em teu opróbrio vejo,
contemplo, Sílvio, deste amor errado,
quão grave é a malícia do pecado,
quão violenta a força de um desejo.

Mal creio, e de lembrar-me ainda me pejo,
que pudesse caber em meu cuidado
o último degrau do desprezado,
o termo, enfim, de mal tomado ensejo.

Eu bem quisera, quando chego a ver-te,
vendo este infame amor, poder negá-lo;
porém logo a razão justa me adverte

de que só há remédio em publicá-lo:
porque do grão delito de querer-te
só é pena bastante o confessá-lo.

EN QUE SATISFACE UN RECELO
CON LA RETÓRICA DEL LLANTO

Esta tarde, mi bien, cuando te hablaba,
como en tu rostro y tus acciones vía
que con palabras no te persuadía,
que el corazón me vieses deseaba;

y Amor, que mis intentos ayudaba,
venció lo que imposible parecía:
pues entre el llanto, que el dolor vertía,
el corazón deshecho destilaba.

Baste ya de rigores, mi bien, baste;
no te atormenten más celos tiranos,
nio el vil recelo tu quietud contraste

con sombras necias, con indicios vanos,
pues ya en líquido humor viste y tocaste
mi corazón deshecho entre tus manos.


EM QUE SATISFAZ UM RECEIO
COM A RETÓRICA DO PRANTO

Esta tarde, meu bem, pois te falava
e no teu rosto e nos teus atos via
que com palavras não te persuadia,
que o coração me visses desejava;

e Amor, que meus intentos ajudava,
venceu o que impossível parecia:
pois entre o pranto meu, que a dor vertia,
o coração desfeito destilava.

Baste já de rigores, meu bem, baste;
não te atormentem mais zelos malsãos,
nem vil receio a calma te contraste

com sombras néscias, com indícios vãos,
que já em líquido humor viste e tocaste
meu coração desfeito em tuas mãos.


ARGUYE DE INCONSECUENTES EL GUSTO
Y LA CENSURA DE LOS HOMBRES QUE EN
LAS MUJERES ACUSAN LO QUE CAUSAN

Hombres necios que acusáis
a la mujer sin razón,
sin ver que sois la ocasión
de lo mismo que culpáis:

si con ansia sin igual
solicitáis su desdén,
¿por qué queréis que obren bien
si las incitáis al mal?

Combatís su resistencia
y luego, con gravedad,
decís que fue liviedad
lo que hizo la diligencia.

Parecer quiere el denuedo
de vuestro parecer loco
al niño que pone el coco
y luego le tiene miedo.

Queréis, con presunción necia,
hallar a la que buscáis,
para pretendida, Thais,
y en la posesión, Lucrecia.

¿Qué humor puede ser más raro
que el que, falto de consejo,
él mismo empaña el espejo,
y siente que no esté claro?

Con el favor y el desdén
tenéis condición igual,
quejándoos, se os tratan mal,
burlándoos, se os quieren bien.

Opinión, ninguna gana;
pues la que más se recata,
si no os admite, es ingrata,
y si os admite, es liviana.

Siempre tan necios andáis
que, con desigual nivel,
a una culpáis por crüel
y a otra por fácil culpáis.

¿Pues cómo ha de estar templada
la que vuestro amor pretende,
si la que es ingrata, ofende,
y la que es fácil, enfada?

Mas, entre el enfado y pena
que vuestro gusto refiere,
bien haya la que no os quiere
y quejaos en hora buena.

Dan vuestras amantes penas
a sus libertades alas,
y después de hacerlas malas
las queréis hallar muy buenas.

¿Cuál mayor culpa ha tenido
en una pasión errada:
la que cae de rogada,
o el que ruega de caído?

¿O cuál es más de culpar,
aunque cualquiera mal haga,
la que peca por la paga,
o el que paga por pecar?

Pues ¿para qué os espantáis
de la culpa que tenéis?
Queredlas cual las hacéis
o hacedlas cual las buscáis.

Dejad de solicitar,
y después, con más razón,
acusaréis la afición
de la que os fuere a rogar.

Bien con muchas armas fundo
que lidia vuestra arrogancia,
pues en promesa e instancia
juntáis diablo, carne y mundo.


ARGÚI DE INCONSEQÜENTES O GOSTO
E A CENSURA DOS HOMENS QUE NAS
MULHERES ACUSAM O QUE CAUSAM

Homens néscios que acusais
a mulher sem ter razão,
sem ver que sois a ocasião
daquilo de que as culpais:

se com ânsia sem igual
solicitais seu desdém,
por que quereis que ajam bem,
quando as incitais ao mal?

Guerreais-lhes a resistência
e logo, com gravidade,
dizeis que foi leviandade
o que fez a diligência.

Parecer quer o denodo
de vosso parecer louco
o menino que faz coco1
e fica a tremer-se todo.

Quereis, com presunção néscia,
achar a que perseguis,
se para noiva, Taís,
se para amante, Lucrécia.

Que humor pode ser mais raro
que o que, falto de conselho,
ele mesmo embaça o espelho
e clama por não ver claro?

Ante o favor e o desdém
tendes condição igual:
clamar, se vos tratam mal,
zombar, se vos querem bem.

Toda opinião sua é insana;
pois a que mais se recata,
se não vos admite, é ingrata,
se vos admite, é leviana.

Sempre tão néscios andais
que, com desigual nivel,
uma culpais por cruel,
outra por fácil culpais.

Como há de estar temperada
a que vosso amor pretende,
se a que é ingrata vos ofende,
se a que é fácil vos enfada?

Mas, entre o enfado e a pena
que vosso gosto refere,
bem haja a que não vos quere
e em boa hora vos condena.

As vossas amantes penas
dão-lhes aos seus vôos alas,
e depois de ruins torná-las,
querei-las boas pequenas.

Quem culpa maior tem tido
em uma paixão errada:
a que cai porque rogada
ou o que roga de caído?

Ou qual é mais de culpar,
se ostentam a mesma chaga,
a que peca pela paga,
ou o que paga por pecar?

Por que, pois, vos espantais
das culpas em que incorreis?
Querei-as qual as fazeis
ou fazei-as qual buscais.

Deixai de solicitar,
e depois, com mais razão,
acusareis a afeição
da que vos for suplicar.

Ah, com muitas armas fundo
que lida vossa arrogância,
pois em promessa e em instância
juntais diabo, carne e mundo.


AL QUE INGRATO ME DEJA, BUSCO AMANTE

Al que ingrato me deja, busco amante;
al que amante me sigue, dejo ingrata;
constante adoro a quien mi amor maltrata,
maltrato a quien mi amor busca constante.

Al que trato de amor hallo diamante,
y soy diamante al que de amor me trata,
triunfante quiero ver al que me mata
y mato al que me quiere ver triunfante.

Si a éste pago, padece mi deseo;
si ruego a aquél, mi pundonor enojo;
de entrambos modos infeliz me veo.

Pero yo por mejor partido escojo,
de quien no quiero, ser violento empleo,
que de quien no me quiere, vil despojo.


O QUE INGRATO ME DEIXA BUSCO AMANTE
Traduzido por Anderson Braga Horta

O que ingrato me deixa busco amante;
o que amante me segue deixo ingrata;
adoro fiel quem meu amor maltrata;
firo quem meu amor busca constante.

O que trato de amor, acho-o diamante,
e sou diamante ao que de amor me trata;
triunfante quero ver o que me mata,
e mato o que quer ver-me triunfante.

Se a este acedo, padece o meu desejo;
se rogo àquele, o pundonor enojo;
de ambos os modos infeliz me vejo.

Assim, prefiro, por menor antojo,
de quem não quero, ser cruel motejo
a, de quem não me queira, vil despojo.


ESTE QUE VES, ENGAÑO COLORIDO

Este que ves, engaño colorido,
que del arte ostentando los primores,
con falsos silogismos de colores
es cauteloso engaño del sentido;

éste, en quien la lisonja ha pretendido
excusar de los años los horrores,
y venciendo del tiempo los rigores
triunfar de la vejez y del olvido,

es un vano artificio del cuidado,
es una flor al viento delicada,
es un resguardo inútil para el hado:

es una necia diligencia errada,
es un afán caduco y, bien mirado,
es cadáver, es polvo, es sombra, es nada.


ESTE, QUE VÊS, ENGANO COLORIDO

Este, que vês, engano colorido,
que, ostentando das artes os primores,
com silogismos pérfidos de cores
é cauteloso engano dos sentidos;

este, em quem a lisonja pretendido
tem escusar dos anos os horrores,
e, ao tempo subjugando-lhe os rigores,
triunfar sobre a velhice e sobre o olvido,

é vazio artifício do cuidado,
é flor exposta ao vento, delicada,
é inútil resguardo contra o fado:

é apenas néscia diligência errada,
afã caduco, e, bem considerado,
é cadáver, é pó, é sombra, é nada.

Alternativa para os tercetos:

é vazio artifício do cuidado,
é flor exposta ao vento, delicada,
é inútil resguardo contra o fado:

é apenas néscia diligência errada,
afã caduco, e, bem considerado,
é cadáver, é pó, é sombra, é nada.

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