terça-feira, 19 de junho de 2012

[Ano II, No. 19 - 2012] O OLHO GREGO | A PELE JAPONESA


... Mas o lavor da taça admira,
Toca-a, e do ouvido aproximando-a, às bordas
Finas hás-de lhe ouvir, canora e doce [...]

- Alberto de Oliveira, Vaso Grego, 1886

Mácron: Vaso grego mostrando o julgamento de Páris, ca. 480 a.C. Antikenmuseum, Berlim. Infelizmente não encontrei a imagem colorida, mas na página do Museu Calouste Gulbenkian, há um outro vaso grego, como ambos são da mesma época e estilo e usam igual técnica, dá pra se ter uma ideia. 

Nessa "cena" do vaso grego, Páris, que embora fosse um príncipe troiano, está temporariamente atuando como pastor, aparece sentado à esquerda, em meio a seu rebanho. Estivera tocando a lira para recrear-se - talvez fosse pra ele o pastoreiro tarefa enfadonha. Surpreende-se ao ver Mercúrio (com botas aladas) acercando-se dele pela direita, guiando as três deusas: Atena, identificável por seu elmo e lança; Hera, a régia esposa de Zeus, chefe dos deuses; e finalmente Afrodite, cercada de pequenos e esvoaçantes Cupidos - uma vencedora infalível. Não há cor ou modelagem aqui. As figuras vermelhas destacam-se nitidamente do fundo preto, mas as linhas fluidas e seguras do pintor deram a esse simples desenho uma elegância e uma graça inesquecíveis.

NOTAS SOBRE UM VASO GREGO

Os ceramistas pintavam uma série de vasos visando produzir um enredo.
Não há ponto de vista de que se possa olhar um vaso.
O observador pode começar ou findar em qualquer lugar.
A figura tridimensional grega mantém-se completa num plano único.

O vaso se encaminha para o espaço euclideano, todavia "o próprio Euclides considerou apenas a beleza desnudada." - Edna St. Vincent Millay

Essa arte se move inflexivelmente em direção do matching ou a representação, entretanto conserva fortes resíduos da "criação" (making) primitiva e da multisensitividade.


ODE SOBRE UMA URNA GREGA
John Keats; trad. Augusto de Campos, Linguaviagem, 1987.

I
Inviolada noiva de quietude e paz,
Filha do tempo lento e da muda harmonia,
Silvestre historiadora que em silêncio dás
Uma lição floral mais doce que a poesia:
Que lenda flor-franjada envolve tua imagem
De homens ou divindades, para sempre errantes.
Na Arcádia a percorrer o vale extenso e ermo?
Que deuses ou mortais?
Que virgens vacilantes?
Que louca fuga?
Que perseguição sem termo?
Que flautas ou tambores?
Que êxtase selvagem?

II
A música seduz. Mas ainda é mais cara
Se não se ouve. Dai-nos, flautas, vosso tom;
Não para o ouvido. Dai-nos a canção mais rara,
O supremo saber da música sem som:
Jovem cantor, não há como parar a dança,
A flor não murcha, a árvore não se desnuda;
Amante afoito, se o teu beijo não alcança
A amada meta, não sou eu quem te lamente:
Se não chegas ao fim, ela também não muda,
É sempre jovem e a amarás eternamente.

III
Ah! folhagem feliz que nunca perde a cor
Das folhas e não teme a fuga da estação;
Ah! feliz melodista, pródigo cantor
Capaz de renovar para sempre a canção;
Ah! amor feliz! Mais que feliz! Feliz amante!
Para sempre a querer fruir, em pleno hausto,
Para sempre a estuar de vida palpitante,
Acima da paixão humana e sua lida
Que deixa o coração desconsolado e exausto,
A fronte incendiada e língua ressequida.

IV
Quem são esses chegando para o sacrifício?
Para que verde altar o sacerdote impele
A rês a caminhar para o solene ofício,
De grinalda vestida a cetinosa pele?
Que aldeia à beira-mar ou junto da nascente
Ou no alto da colina foi despovoar
Nesta manhã de sol a piedosa gente?
Ah, pobre aldeia, só silêncio agora existe
Em tuas ruas, e ninguém virá contar
Por que razão estás abandonada e triste.

V
Ática forma! Altivo porte! em tua trama
Homens de mármore e mulheres emolduras
Como galhos de floresta e palmilhada grama:
Tu, forma silenciosa, a mente nos torturas
Tal como a eternidade: Fria Pastoral!
Quando a idade apagar toda a atual grandeza,
Tu ficarás, em meio às dores dos demais,
Amiga, a redizer o dístico imortal:
"A beleza é a verdade, a verdade a beleza"
— É tudo o que há para saber, e nada mais.


PEQUENA NOTA SOBRE A URNA DE KEATS
[Siga também com  artigo de Clarice Barcellos: Um Poema e um Monumento impactam a imaginação da mesma forma.]

- Keats buscava um fio condutor onde o vaso provavelmente oferecia tão-somente um incidente. Uma coincidência elevada à dignidade visual adquire o caráter de um fio condutor.

- Quando interrogado sobre que música preferia, Mozart replicou: "Nenhuma música."



A LINHAGEM DO MAR
Hesíodo, Teogonia - A Origem dos Deuses; trad. JAA Torrano, Iluminuras.

O Mar gerou Nereu sem mentira nem olvido,
filho o mais velho, também o chamam Ancião
porque infalível e bom, nem os preceitos
olvida mas justos e bons desígnios conhece.
Amante da Terra gerou também o grande Espanto
e o viril Fórcis e Ceto de belas faces
e Euríbia que nas entranhas tem ânimo de aço.
De Nereu nasceram filhas rivais de Deusas
no mar infecundo. Dádiva de belos cabelos
virgem do Oceano, rio circular, gerou-as:
Primeira, Eficácia, Salvante, Anfitrite,
Doadora, Tétis, Bonança, Glauca,
Ondaveloz, Gruta, Veloz, Marina amável,
Onidéia, Amorosa, Vitória de róseos braços,
Melita graciosa, Portuária, Esplendente,
Dadivosa, Primeira, Portadora, Potente,
Ilhéia, Recife, Rainhaprima,
Dádiva, Onividente, formosa Galatéia,
Eguaveloz amável, Égua-sagaz de róseos braços,
Pega-onda que apazigua no mar cor de névoa
facilmente a onda e o sopro de fortes ventos
com Aplana-onda e Anfitrite de belos tornozelos,
Ondeia, Praia, a bem-coroada Rainhamarina,
Glaucapartilha sorridente, Travessia,
Reúne-gente, Reúne-bem, Rainha-das-gentes,
Multi-sagaz, Sagacidade, Rainha-solvente,
Pastora de amável talhe e perfeita beleza,
Arenosa de gracioso corpo, divina Equestre,
llhoa, Escolta, Preceitora, Previdência
e Infalível que do pai imortal tem o espírito.
Estas nasceram do irrepreensível Nereu,
cinqüenta virgens, sábias de ações irrepreensíveis.
Espanto à filha do Oceano de profundo fluir
desposou, Ambarina. Ela pariu ligeira Íris
e Harpias de belos cabelos: Procela e Alígera
que a pássaros e rajadas de vento acompanham
com asas ligeiras, pois no abismo do ar se lançam.
De Fórcis, Ceto gerou as Velhas de belas faces,
grisalhas de nascença, apelidam-nas Velhas
Deuses imortais e homens caminhantes da terra:
Penfredo de véu perfeito e Ênio de véu açafrão.
Gerou Górgonas que habitam além do ínclito Oceano
os confins da noite (onde as Hespérides cantoras):
Esteno, Euríale e Medusa que sofreu o funesto,
era mortal, as outras imortais e sem velhice
ambas, mas com ela deitou-se o Crina-preta
no macio prado entre flores de primavera.
Dela, quando Perseu lhe decapitou o pescoço,
surgiram o grande Aurigládio e o cavalo Pégaso;
tem este nome porque ao pé das águas do Oceano
nasceu, o outro com o gládio de ouro nas mãos,
voando ele abandonou a terra mãe de rebanhos
e foi aos imortais e habita o palácio de Zeus,
portador de trovão e relâmpago de Zeus sábio.
Aurigládio gerou Gerioneu de três cabeças
unindo-se a Belaflui virgem do ínclito Oceano.
E a Gerioneu matou-o a força de Heracles
perto dos bois sinuosos na circunfluída Eritéia
no dia em que tangeria os bois de ampla testa
para Tirinto sagrada após atravessar o Oceano
após matar Ortro e o vaqueiro Eurítion
no nevoento estábulo além do ínclito Oceano.
Ela pariu outro incombatível prodígio nem par
a homens mortais nem a Deuses imortais
numa gruta cava: divina Víbora de ânimo cruel,
semininfa de olhos vivos e belas faces
e prodigiosa semi-serpente terrível e enorme,
cambiante carnívoro sob covil na divina terra
Aí sua gruta lá embaixo está sob côncava pedra
longe dos Deuses imortais e dos homens mortais,
aí lhe deram os Deuses habitar ínclito palácio.
Em Árimos sob o chão reteve-se a lúgubre Víbora
ninfa imortal e sem velhice para sempre.
É fama que com ela Tífon uniu-se em amor,
terrível soberbo sem lei com a virgem de olhos vivos.
Ela fecundada pariu crias de ânimo cruel.
Gerou primeiro Ortro, cão de Gerioneu.
Depois pariu o incombatível e não nomeável
Cérbero carnívoro, cão de brônzea voz do Hades,
de cinquenta cabeças, impudente e cruel.
A seguir gerou Hidra, sábia do que é funesto,
e em Lerna nutriu-a a Deusa de alvos braços Hera
por imenso rancor contra a força de Heracles;
matou-a o filho de Zeus com não piedoso bronze,
Heracles Anfitrionida, com o dileto de Ares
Iolau, por desígnios de Atena apresadora.
Ela pariu a Cabra que sopra irrepelível fogo,
a terrível e grande e de pés ligeiros e cruel,
tinha três cabeças: uma de leão de olhos rútilos,
outra de cabra, outra de víbora, cruel serpente.
Na frente leão, atrás serpente, no meio cabra,
expirando o terrível furor do fogo aceso.
Agarrou-a Pégaso e o bravo Belerofonte.
E ela pariu a funesta Fix, ruína dos cadmeus,
emprenhada por Ortro, pariu o Leão de Neméia
que Hera a ínclita esposa de Zeus nutriu
e abrigou nas colinas de Neméia, pena dos homens:
aí residindo destruía greis de homens
senhor de Treto e Apesanta em Neméia,
mas sucumbiu ao vigor da força de Heracles.
Unida a Fórcis em amor, Ceto gerou por fim
terrível Serpente que no covil da terra trevosa
nas grandes fronteiras guarda maçãs de ouro.
Esta é a geração de Ceto e de Fórcis.


TRÊS SONETOS DE OLIVEIROS LITRENTO

Quase-esquecidos, quase-perdidos, que estão no livreto: orfeu e a ninfa, livro constituído do Livro I, poema longo que lhe dá título, formado por vinte sonetos construídos em sequência, e de mais dez sonetos avulsos e dois poemas maiores, enfeixados no Livro II, sob a designação de “Orfeu em Eurídice”. publicado pelo poeta e crítico alogoano em 1973:

SONETO V

A ninfa vem de longe. Meu corcel,
cavalgando por águas de andorinhas,
não trilhará decerto o mesmo chão.
Nas margens esquecidas das estradas
há sempre o mar, falando de mansinho,
coberto de relento e arrebóis.
Já não vejo as urtigas nem espinho,
ofuscando que estou de tantos sóis.
E neste chão, que lembra meus brinquedos,
com cabelos de espumas e veleiros
a praia é uma moça adormecida.
É um país marinho, que recebe,
no sossego infinito dos coqueiros,
a ninfa e o meu amor por companheiros

SONETO XV

Enfim, a tua ausência é um convite
ao leito, que aparece lentamente,
devolvendo-me a ninfa, suavemente
descansando a cabeça nos meus ombros.
Eu te lembro tão pura quanto desnuda,
outras vezes serena ou enfurecida.
Adormeço, beijando a tua boca
como a chuva, beijando teus cabelos.
Na obscuridade erótica da angústia
eu te possuo na noite adormecida,
e os teus olhos cerrados de desejo
gritam por mim, estão gritando, gritam.
Em teu ventre meu filho prematuro
é fauno e é um deus, é sonho e é futuro.

SONETO XX

Eu te procuro em toda parte:
nos búzios, nas areias ou nas luas,
nas ilhas que inventei, nalguma estrela,
ou no sonho perdido de um marujo.
emerge dos meus olhos a lembrança
e sei que viverás em meu desejo.
Continua o mistério do teu corpo,
dançarina de luz, de mar e de vento.
Eu te procuro sempre em toda parte,
ó velocino de ouro que não tive!
Um crepe descerá no sol de outono,
mas o amor velará o nosso sono.
Eu, Orfeu, e tu, ninfa, viveremos.
E num mar de domingo voltaremos.


Katsushika Hokusai (japonês, 1760-1849). A grande onda ao largo de Kanagawa (das Trinta e Seis Vistas do Fuji), 1823-1829 - xilogravura, 25x38 cm. Biblioteca do Congresso Japonês.

Usando contornos firmes e formas definidas com extrema precisão, o artista japonês Hokusai foi surpreendemente bem sucedido ao nos transmitir a magnificência assustadora de uma grande vaga. Essa xilogravura fazia parte de uma série de vistas do monte Fuji, e o cônico e nevado pico vulcânico pode ser visto ligeiramente à direita do centro do quadro. Mas, evidentemente, é a gigantesca e imponente onda à esquerda, encrespada e prestes a quebrar, que primeiro se apossa de nossa atenção. A espuma turbilhonante se desfaz na miríade de pequenas garras, cada uma delas claramente definida. O irresistível ímpeto ondulante do mar é revelado pelas formas brancas, de recortes nítidos e eriçados. A composição constitui toda ela uma imagem tão vigorosa do mar tempestuoso e, ao mesmo tempo, um arranjo decorativo tão maravilhosamente agradável, que só algum tempos depois se começa a prestar atenção aos detalhes e se descobrem as embarcações quase a pique e os homens derrotados pelo esforço inglório.

Eu tenho passado minha vida eliminando da poesia toda expressão escrita para o olho...
- William Butler Yeats

iniciação pra diadorim ou seu pré-texto

todas essas madrugadas ela me fala.
é sonar a menina.
feita de um finnegans wake,
misturando esses dialetos todos.

hoje, depois daqueles porquês em espanhol,
eu lhe disse:

POEMA
Raimundo Diadorim, Madrugadas de Abril

- Você é boa com as línguas, hein. Nossa, me dá arrepios só de pensar.

2:16
o ritual de evocação a partir da rotina, é para convocar as musas
(filhas da memória).

PEQUENA NOTA DE PENSAR DIADORIM

- As melodias que já se fizeram ouvir são ternas porém mais ternas ainda são as não olvidas [tambores pra n'zinga, 2012], atinge o sentido do tato através da palavra do ouvido. Diadorim sonda processos psíquicos e estéticos. Alcança a tactibilidade através da audição; e para o sentido do tato, a forma significativa é encontrada no intervalo, não na conexão. Será por isso, "madrugadas"?


ALGUMAS VARIAÇÕES DE CULTURA
Leonardo Fróes, Argumentos Invisíveis

A cultura da couve, que exige um trato delicado e água perto
para dar folhas tenras. A cultura
do milho, que se disfarça às vezes em mulheres viçosas.
As socas de capim que constituem tamanha
sabedoria natural sobre os morros. A cultura da morte,
que não dá sossego, ou mesmo a cultura do sono
a descoberta arregalada dos olhos pensativos no céu.
A cultura curiosa da satisfação em te ver
após o banho. A sanha cultural dos sanhaços
bicando um mamão maduro no pé. A poeirenta
Kultur que se agasalha com tosse pesquisando venenos
na obra do poeta imaturo que abriu os braços no abismo
e mergulhou gargalhando para os pósteros.
O caldo espesso das culturas nanicas
que proliferam pela madrugada em esquinas
onde mosquitos invisíveis telegrafam na luz.
Os ombros bambos da cultura na cama
com essa impressão de cicatriz das suas unhas nas costas
raspando escamas ou camadas de conotação babilônica.
A cultura do êxtase. O encadeamento despojado
dos objetos sem função quando alguém
não se procura, não ensaia, não tece elogios, não discute.
A cara calma da pessoa calada que desaparece de cena
para observar seus iguais com paciência de boi.
Aquela pressa dos pacotes que estão vendendo cultura
e a falta que uma escova de dentes, no outro extremo,
faz na boca do povo.

POEMA
Mariana Botelho, Suave Coisa

não sei verbalizar
o abismo

sei cair
dentro dele
como dois olhos que eu avisto e temo

e o chão se demora -
amor -
a tocar meus pés

Fotografia sem título de David Terrazas (Espanha).

CAPITULO 7
Julio Cortazar, Rayuela [ouça a leitura do próprio autor aqui!]

Toco tu boca, con un dedo toco el borde de tu boca, voy dibujándola como si saliera de mi mano, como si por primera vez tu boca se entreabriera, y me basta cerrar los ojos para deshacerlo todo y recomenzar, hago nacer cada vez la boca que deseo, la boca que mi mano elige y te dibuja en la cara, una boca elegida entre todas, con soberana libertad elegida por mí para dibujarla con mi mano en tu cara, y que por un azar que no busco comprender coincide exactamente con tu boca que sonríe por debajo de la que mi mano te dibuja.

Me miras, de cerca me miras, cada vez más de cerca y entonces jugamos al cíclope, nos miramos cada vez más de cerca y nuestros ojos se agrandan, se acercan entre sí, se superponen y los cíclopes se miran, respirando confundidos, las bocas se encuentran y luchan tibiamente, mordiéndose con los labios, apoyando apenas la lengua en los dientes, jugando en sus recintos donde un aire pesado va y viene con un perfume viejo y un silencio. Entonces mis manos buscan hundirse en tu pelo, acariciar lentamente la profundidad de tu pelo mientras nos besamos como si tuviéramos la boca llena de flores o de peces, de movimientos vivos, de fragancia oscura. Y si nos mordemos el dolor es dulce, y si nos ahogamos en un breve y terrible absorber simultáneo del aliento, esa instantánea muerte es bella. Y hay una sola saliva y un solo sabor a fruta madura, y yo te siento temblar contra mi como una luna en el agua.

CAPÍTULO 7
Júlio Cortázar, O Jogo da Amarelinha; trad. Fernando de Castro Ferro. Civilização Brasileira, 1996.

Toco tua boca, com um dedo toco o contorno da tua boca, vou
desenhando essa boca como se estivesse saindo da minha mão,
como se pela primeira vez a tua boca se entreabrisse e basta-me
fechar os olhos para desfazer tudo e recomeçar. Faço nascer, de
cada vez, a boca que desejo, a boca que a minha mão escolheu e
te desenha no rosto, a boca eleita entre todas, com soberana liberdade
eleita por mim para desenhá-la com minha mão em teu rosto e
que por um acaso, que não procuro compreender, coincide exatamente
com a tua boca, que sorri debaixo daquela que a minha mão de desenha.
Tu me olhas, de perto tu me olhas, cada vez mais perto e, então,
brincamos de cíclope, olhamo-nos cada vez mais de perto e nossos
olhos se tornam maiores, aproximam-se, sobrepõe-se e os cíclopes
se olham, respirando indistintas, as bocas encontram-se e lutam
debilmente, mordendo-se com os lábios, apoiando ligeiramente a
língua nos dentes, brincando nas suas cavernas, onde um ar pesado
vai e vem com um perfume antigo e um grande silêncio. Então, as
minhas mãos procuram afogar-se nos teus cabelos, acariciar
lentamente a profundidade do teu cabelo enquanto nos beijamos
como se tivéssemos a boca cheia de flores ou de peixes, de
movimentos vivos, de fragrância obscura. E, se nos mordemos,
a dor é doce; e, se nos afogamos num breve e terrível absorver
simultâneo de fôlego, essa instantânea morte é bela. E já existe
uma só saliva e um só sabor de fruta madura, e eu te sinto
tremular contra mim, como uma lua na água.


UMA NOTA SOBRE TACTILIDADE

Numa cultura visual soa absolutamente paradoxal dizer que a escultura é fundamentalmente visual. Aliás, a tactilidade foi até agora, me parece, um assunto pouco tratado e, todavia, é decisiva no mundo das artes. Existem passagens ocasionais acerca do assunto, como em Homem e Povo, de Ortega y Gasset (Norton):

"Se é verdade que o visível e o ato de ver propiciam maior clareza como exemplos numa primeira abordagem de nossa doutrina, seria um grave erro supor que a visão é o "sentido" mais importante. Mesmo a partir do ponto de vista psicofisiológico, o qual é subordinado, parece mais e mais provável que o tato foi o sentido original do qual os demais foram diferenciados gradativamente. Do ponto de vista mais radical torna-se patente que a forma decisiva de nossa relação com as coisas é realmente o tato. E se assim, o tato, o contato constituem necessariamente o fator mais concludente para determinar a estrutura do mundo em que vivemos."

A tactilidade representa o mundo do intervalo e não da conexão, sendo esta razão de ser antitética relativamente ao mundo visual. Pois o visual paira sobre o mundo todo contínuo e do conexo. Para o homem civilizado ou homem do sentido visual, o "aperto de mão" aboliu sua função e significado originais que reformaçm o intervalo ou difusão cultural entre povos. Algo análogo ao "aperto de mão" na qualidade de táctil e reforçador do intervalo existe no mundo oriental, como escreve Ortega y Gasset:

"A cortesia, como veremos adiante, é uma técnica social a qual minora o choque, o conflito e o atrito que constituem a sociabilidade. Ao lado de cada indivíduo cria uma série de minúsculos parachoques os quais atenuam o impacto dos outros sobre nós e o nosso sobre os outros. A melhor prova disto repousa no fato de que a cortesia pôde atingir suas mais perfeitas, mais ricas e mais refinadas formas em países cuja densidade de população era muito grande. Daí, alcançou o seu clímax onde isso era mais elevado - a saber, no Extremo Oriente, na China e no Japão, onde os homens necessitavam viver muito próximos uns dos outros, quase que amontoados uns sobre os outros. Sem todos esses pequenos parachoques, a convivência seria impossível. É bem conhecido o fato do europeu na China produzir a impressão de ser um indivíduo grosseiro, rude e inteiramente mal-educado. Logo não é de se surpreender que a língua japonesa tenha conseguido suprimir aqueles dois ligeiramente impertinentes e às vezes mais do que ligeiramente impertinentes 'tiros de pistola': o 'você' e o 'eu', no qual, desejando ou não, introduzo minha personalidade em meu semelhante, e minha idéia de sua personalidade no 'Você'."

As implicações sociais, políticas e artísticas da tactilidade podiam ser perdidas para a percepção humana apenas numa cultura visual ou civilizada que está se dissolvendo sob o impacto do circuito elétrico. O sentimento japonês da importância do tato como intervalo está suficientemente indicado em O Livro do Chá, de Okakura-Kazuzo (Kenkyshua):

"Devemos conhecer o jogo inteiro a fim de agir convenientemente com as aprtes; a idéia de totalidade não deve jamais evaporar-se na de indivíduo. Isto Laotsé esclarece por meio de sua metáfora preferida do Vácuo. Declarava que unicamente no vácuo jazia o verdadeiramente essencial. A realidade de um quarto, por exemplo, devia ser encontrada no espaço vazio envolvido pelo teto e as paredes e não no próprio teto e nas próprias paredes. A utilidade de um cântaro de água residia no vazio em que a água podia ser colocada, não na forma do cântaro ou no material que era feito. O vácuo tudo pode e tudo contém ou pode conter. Tão somente no vácuo o movimento se faz possível. Aquele que pudesse fazer de si mesmop um vácuo no qual os outros pudessem entrar livremente tornar-se-ia senhor de todas as situações. O todo pode sempre dominar a parte".

O autor continua sua discussão numa passagem que talvez se ajuste melhor à percepção ocidental:

"Na arte a importância do mesmo princípio é ilustrada pelo valor da sugestão. Ao deixar algo não dito, o espectador ganha uma nova chance para completar a idéia e assim uma esplêndida obra-prima irresistivelmente prende sua atenção até que você tenha a impressão de se tornar realmente uma parte dela. Eis aí um vácuo para você entrar e encher com o grau máximo da sua emoção estética."


Curta-metragem: The Aroma of Tea/ O cheiro do Chá (Holanda, 2006), de Michael Dudok de Wit. Siga também com o longa de animação Hotaru no Haka/ Cemitério de Vagalumes (Japão, 1988), de Isao Takahata [dividido em cinco partes].

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