sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

[Ano II, No. 15 - 2012] POESIA MARGINAL 1: VALTER DI LÁSCIO

pode me chamar de meio-fio; mundo temos dois: o de vocês e o nosso.
- Valter di Láscio

Valter di Láscio no Terminal do Papicu, Fortaleza/ CE. Siga com a poesia de Valter di Láscio, um vídeo marginal; mas não deixe de ver também a entrevista de Geraldo Vandré à Globo News, que me deu a ideia desta edição.

voo para o pássaro vermelho, uma tentativa crônica
nina rizzi

poesia todo dia,
que mais nos desejaria?
de piada,
de miada,
de rugida,
mas que sejam
poéticos
todos nossos
dias.

tinha uma pasta. pasta reutilizada e papéis borrados re-líveis. só. que não precisa nada mais. é um tostão pra cachaça e pão. circo que fazem de nós. palhaços, malabaristas, contorcionistas, domadores de feras. suicidas.

vai-te embora,
vai-te embora,
que espaços elitizados
não são pra pé-rapados

ouviam todos dos empregadinhos dos aparelhos repressores do estado. os homenzinhos que em casa são oprimidos por suas gordas e sádicas esposas e que, agora, simulavam um tosco riso de satisfação no canto dos lábios. por convidar ase retirar o semeador de poesia do centro de arte e cultura. do centro de arte e cultura expulso por semear poesia.

: deixa estar
eles pensam que fazemos
arte enclausurados
mas estamos
soltas mentes
nem tentem
me calar
se expulso
volto
se volto
declaro guerra
aos hipócritas
minhas mãos suadas
denunciam
minha indignação
as mãos
que se não
usadas
dão vazão
a toda
arte-corpo-frêmito.

ele nos ofereceu maiores cordas pra juntar agrilhoados. jogou papéis ao vento. no circo. pra multidão se passar em re-vista.
***

era carnaval. era o nordeste e era o frio. era jazz, blues e borboletras. um barbudo que foi um dia historiador e, herói, cansou de academi-sismos. podia ter sido um meu mestre. de repente, a gente prende. antes, esperto, preferiu viver. e se deixamos de nos ver na franca do imperador, não na guaramiranga.

sinuca. (odi)lombra. cachaça.
meu beijo nos lacrimejantes lispectorianos-olhos.
chuva. chuva. chuva-dadá
de poesia picada
: e nenhum sorriso por escambo.
biscoito. gomas. água
pra a peque-nini. e o
enfadonho redundante
reggae. fichas
e cachaça pra
mamãe. e sua
parte
no circo
deixo em teu
caderno:

PEDRAS E BLINDADOS
Valter di Láscio

Pedi a Nina que se acalmasse
Se ocultar é a lei
Não podemos expor nossas cabeças à
baioneta do inimigo
Eles desejam nos desarmar e
nos aniquilar
Andamos feito gatos em guetos
esgueirando pelos cantos
Ainda sentimos nas vestes
o cheiro de gás
Na mochila, um arsenal
e um livro de Maiakóvski
Na cidade vazia, uma população escondida
e amedrontada
Ao chegarmos trancamos a porta
Nossa casa dava-nos uma falsa
sensação de segurança
Que no fundo sabíamos não ter mais
Foi quando nos despimos para o banho
que notei em tuas costas
a marca da covardia da truculenta
repressão
De manhã acordei com Nina chorando
Eu sabia que não era dor
Era raiva
Ódio
Todo dia aqui e acolá
Surgindo mães chorando entes
queridos e desaparecidos
A era da pedra
Pedra contra blindado
Tropas de elite versus jovens idealistas
Cães famintos, latindo e legislando
em causa própria
Enquanto seus subalternos
jogam o lixo nos rios ou
em alto mar...
ou então sangram o asfasto.
*


a gente não transou no papicu aquele dia.
todos nos olhavam. perplexos

você só queria uma fotografia.
eu, poesia.


[amores rizzíveis, nina rizzi]
*

SOBRE O CIMENTO FRIO
Pedro Rocha, Grupo T.R.E.M.A., Overmundo

Chegou no terminal a uma hora da madruga, talvez menos. O corpo um pouco inclinado para frente, bigode amarelo, rosto surrado cor cinzas. Eu estava no terminal para mais um episódio da série Cadeiras com Rodas. Fiquei olhando. Sentou em um dos bancos de cimento do terminal, fechou os olhos e começou a cambalear levemente em uma pequena elipse. Sabia quem era. Como não? Valter di Lascio. Poeta. Como não? Freqüentador do Centro de Humanidades da UFC, da Uece, dos bares do bairro do Benfica, da Praia de Iracema... Vendedor chato de livretos de poesia sempre a lhe abordar em momentos inconvenientes.

BIS
COITO
COM
CHAMPAGNE
POESIAS DE VALTER Di LASCIO.

"Como não!? Aquele paulista que vive no Dragão do Mar a vender aquelas xerox. Algo como... Um poeta marginal! Isso.Um poeta marginal a andar pelas ruas de Fortaleza em pleno século XXI".

De 48 anos. O universitário que foi pra Bahia, visitar uma figura, acabou ficando 15 dias na cada dela. Depois mais 15, foi bater em Ribeirão Preto. O curso de História na UNESP correndo... Mais quinze dias não vão fazer diferença. Minas... Há nove anos em Fortaleza. Sabe-se lá como chegou aqui... Passando agora, uns tempos, em Jericoacoara, reduto de turistas do mundo inteiro.

Dizem... que um dos homens mais assaltados em Fortaleza. Coisa de 50 vezes. Levam papéis, alguns livretos, desodorante, escova de dente, algumas poesias recém escritas. Morador do Terminal de ônibus do Papicu há algum tempo. Lugar seguro em Fortaleza. Por ali, no terminal, chegam alguns, quando se finda um dia e insiste em começar outro.

Fuma feito uma caipora. O bigode não nega. Bebe socialmente diariamente, tentando dar conta das demandas da street high society fortalezense. Dois meses sem beber por motivos de ordem médica.

Valter di Lascio. Como não? Tinha que entrevistá-lo.

PR: Como que você vê sua condição de poeta marginal? Acredita nesse estereótipo?

VL: Quem colocou esse estereótipo não fui eu. "Ah, porque você dorme no terminal". Durmo no terminal. Durmo no terminal porque eu não tenho grana porra, só por isso. Se tivesse grana, claro que eu não ia tá dormindo no terminal. Quero escrever, não tenho condições de escrever legal. Quero trabalhar não posso. Tô querendo estudar não posso. Como que eu vou estudar no terminal? Não tem condições. Tô querendo trabalhar num projeto que são contos, fiz alguns contos e tal, mas pô, não tem condições, porra. Eu mal durmo. Eu cochilo, não durmo... Isso é uma conseqüência da própria cultura oficial porra. Se os caras não têm o hábito de ler, como toda hora eu tô escutando: "não gosto de ler", "vixe, tem que ler?". Quer dizer, se as pessoas não gostam de ler, não vendo. Se não vendo, não tenho como me manter. Tenho que tá na rua. Que nem agora, quero ir embora pra Jeri. O que acontece? Passo a noite, o que eu consigo de grana? Consigo de grana pra chegar no terminal comer, comprar cigarro, o básico. De manhã faço a merenda, no terminal, lógico, óbvio e vou pra rua. Vou pra Universidade, fazer cópia... Enfim, vou fazer o que eu tenho pra fazer. O que me sobra no dia seguinte é a grana pra refazer o material, às vezes não dá nem para almoçar.

PR: A tua poesia é de subsistência?

VL: Total, total, total... Por mim eu não venderia dessa forma que eu vendo. Por mim eu venderia o produto final, ele completo, o livro. O livro com 130 poemas, ilustrado, do jeito que foi feito.

PR: Como tu produz esses livretos?

VL: É feito num computador a matriz. Eu pago pra fazer, amigo meu faz, o que tiver mais fácil no momento. Se tiver dinheiro eu mando fazer, porque é aquela coisa às vezes o cara pega dinheiro pra fazer, na maior boa intenção. Porém, no entanto, o cara estuda, o cara trabalha, o cara tem a vida dele. Eu não posso ficar no pé dele cobrando: "Porra, você já fez? Quando você me entrega?". Pô, o cara tá fazendo de graça, na maior boa vontade, e eu ainda vou ficar pegando no pé? Não é legal. Tenho que pagar. Eu fui fazer agora o cara me cobrou 1,50 por página. Depois que eu mandei fazer o cara chegou pra mim: "Porra, por que tu não falou comigo?". Como é que eu vou saber? Eu não vou ficar perguntando de um por um, "você pode fazer?", "você pode fazer?". Então é feita a matriz no computador, depois tirado xerox. Custeado por mim.

PR: Quais os pontos que tu mais vende?

VL: Não tem os pontos que eu mais vendo, são os únicos que eu vendo. É Universidade, Ponte Metálica e Dragão do Mar.

PR: Existe alguma coibição no Dragão do Mar?

VL: Existe. Eu não tenho autorização. Agora que a segurança tá pegando no pé. Cheguei de Jeri agora, preciso vender, eles não tão deixando. Só pode vender na praça, se não for na praça eles vêm pegar no pé. Só nos bancos, ali eu posso vender. Debaixo do planetário eu não posso, próximo do cinema eu não posso, debaixo da passarela eu não posso. São dependências do Dragão do Mar. Onde é o limite, onde termina o Dragão do Mar e onde começa? Não sei, aliás nem eles [seguranças] sabem, é ordem superior, é ordem do chefe... Eles não questionam nada.

VL: O que você acha desse tipo de proibição em um ponto cultural?

PR: Totalmente imbecil. Se eu não posso vender um livro num centro que se diz de arte e cultura, porque eu não tenho a suposta autorização, eu vou vender aonde? Porra, no show do Calcinha Preta? Ou no Castelão em dia de jogo Ceará e Fortaleza? Não tem cabimento porra, invés de ser proibido devia ser incentivado. Quando eu converso isso ai com turista, o cara fica dizendo: "Porra, não pode", se espantam. Por que que não pode? Vai perguntar pra ele porra. Nêgo vende o cacete a quatro lá, mas tem autorização. Não sei que porra de autorização é essa. Pra botar um crachazinho no peito? Não tem cabimento porra...

PR: A tua relação com Fortaleza é opressora?

VL: Ah sim, me incomoda. Eu não agüento mais viver em cidade grande, isso também em outras cidades grandes. Eu não consigo mais viver nessa neura. Nos meus textos, tu vai ver que tem toda uma temática urbana. Eu não consigo me imaginar escrevendo cordel, seria uma violência, seria eu massacrar o cordel. Então as informações que eu trago são outras, são influências urbanas.

PR: Já tentou desistir da poesia?

VL: Não, não pensei.

PR: Por quê?

VL: Você já pensou em parar de respirar?

PR: Não.

VL: Então, é a mesma coisa. É uma coisa vital. Não dá mais, chegou num ponto que não tem mais volta, agora é só continuar, onde vai dar não sei. Pelo menos não vai ficar que nem a Ponte Metálica. Espero que não, porque a Ponte Metálica é uma ponte surrealista, é uma ponte que não vai pra lugar nenhum. E não é uma ponte na realidade, porque toda ponte implica que você saia de um ponto A para um ponto B. Tem início e fim. Tá ultrapassando um obstáculo, né? Essa ponte não, ela só começa, não termina. Pra mim é um negócio surreal isso aí. Então eu não quero que meu trabalho fique assim, também interrompido, então eu vou continuando... Essa ponte minha vai continuando, aonde vai chegar não sei e não tô preocupado. O que eu quero, que fique bem claro, é paz e sossego, me deixar trabalhar sossegado, só isso porra.

PR: Você tem compromisso com que valores?

VL: É uma coisa que eu venho me questionando há muito tempo. O que realmente é importante pra você?

PR: Pra mim?

VL: Pra você que eu digo pra todos. Pra você também. Pra você é importante terminar o curso de jornalismo, ter uma profissão... Não sei se você quer carro, casa na praia, cacete a quatro. O que eu quero? Não quero carro, não quero porra nenhuma, o que eu quero é trabalhar sossegado, ter um canto pra poder trabalhar, pra poder receber meus amigos, viver um pouco dignamente. Não passar fome como eu passo, não passar sede como eu passo e isso não quer dizer luxo entendeu, continuo com minha havaiana no pé. Não quero 10 calças como eu tinha antigamente, não quero uma porrada de livros, o livro pra mim é outro lance que eu mudei meu relacionamento com ele. O que que adianta está com uma estante com uma porrada de livros apodrecendo lá se eu já li. Então, se você me dá um livro, como já aconteceu e tem acontecido, então... se você tá me dando, não espere que ele fique na minha mão. Não vai ficar. Já li? Já absorvi? Eu passo pra frente, porque eu prefiro que ele passe pra frente do que fique parado na estante. Quantas pessoas estão sendo privadas de ler enquanto ele tá privado na estante? Pessoas que não têm condições de comprar o livro. Isso é com tudo. Eu tô cada vez mais querendo o mínimo.
***

Pedi para que recitasse um poema (disponível AQUI). Insinuou um cachê para a entrevista ainda com o gravador ligado. Brincou. Queria receber em Euro. De alguma forma tinha que ajudá-lo. De alguma forma ia ter ganhos com a publicação do texto também. Dei 5 reais. Depois comprei mais dois livretos, por um real cada.

Encontrei Valter mais uma vez no terminal. Ainda tentava interar o dinheiro da passagem para Jeri. Reclamava que lhe faltava o que ler. Entreguei-lhe um livro que tinha prometido. Qualquer livro. Escolhi uma edição de bolso de "Numa fria" de Bukowski, sem atentar para a ironia do autor escolhido.

Depois, cruzei com ele mais uma vez nos arredores do Centro de Humanidades da UFC. Três vezes em pouco mais de uma semana. Como andava... Não o vi mais. Foi pra Jeri.
*

5 POEMAS DE VALTER DI LÁSCIO

CANIBALISTICAMENTO CORRETO

Hoje estou
Com a fome dos canibais
Devorar os bispos e os cardeais

PEQUENA HISTÓRIA DO BECO E DA AVENIDA

Como poderíamos dar certo?
Tu és avenida.
Eu, o beco
Tu tens os olhos de néon,
Os meu, um emaranhado
uma gambiarra

Tua pele lisa e linda,
Negro asfalto que brilha
Eu, de pele manchada e esburacada
Tu de nome pomposo:
Angélica, Paulista, Consolação...
Eu, beco da Traição, da Mãe Chica e o
Escambau

Recebes presidentes, ilustres e patrões
Eu, bichas, putas e ladrões
Tu tens shoppings de quarteirão
Já eu, bodegas de montão
Tu exibes a beleza que fascina
Eu, a pobreza que incrimina

Ocultas na verdadeira face
Vil, mesquinha e hipócrita
Tudo que eu condeno
Faço da pobreza meu sangue
Da feia face, minha bela bandeira
E dos miseráveis, meu exército

Enquanto tu és previsível
Eu tenho em minhas vielas e esquinas
a surpresa

O beijo inesperado
De um travesti com um socialite
Na ladeira, um encontro de um cafetão
Com uma de suas damas que vem nos abusar

Temos ainda à beira de um casebre
A luz de um amor sincero
E no resplandecer do dia a beleza de duas
fantasias
Jogadas sobre a janela de um barraco
qualquer

Quem diria, não são fantasias
São Pierrot e Colombina.

SANGRANDO

Poeta da rua, que tens a lua
Como amante
O sol como cúmplica
As estrelas como guia

Poeta das ruas, que faz da estrada
Teu leito
Dos amores teus sonhos
Da poesia a razão do teu
Viver

És o fio da faca, que corta
E faz sangrar

VIAGEM DERRADEIRA

Os anjos hoje anunciaram a minha partida
E tu meu irmão de Meiota em punho caberá
................................. reunir nossos guerreiros
Em breve pegarei a estrada
................................. levando muitas saudades
E vocês, irmãos de sangue e som, cuja mãe
.................................. deu-lhes o mesmo ventre
Que ao me ver partir batam forte o tambor
e distorçam a guitarra
Toquem fogo no meu nome !!!
Reconheçam-me pelo cheiro,
...................pela ousadia e rebeldia
"- Todo louco te de viver pouco,
...........mas intensamente, o suficiente."
Quero declarar aqui, todo meu amor,
.................meu rancor, meu furor
Quero ver todas as veias
................saltarem de meu corpo
Em meu vaso sanguíneo quero flores
.................diversas e todas as ervas

O NOVO LIBERTA-SE

De que adianta a vida
....se não houverem riscos?
De que valeria a faca
se não cortássemos os artifícios?
De que adiantam as verdades empoeiradas?
Um palavrão preso na garganta
Um fato que poderia ser
mas ficou preso nas artimanhas
dos velhos grilhões
Com agilidade felina, o novo liberta-se
.jogando-se da janela do sanatório.
*

3 comentários:

Mara faturi disse...

Bárbara a escolha queri*)

Estava com saudades de te visitar, andei meio sumida, mas aqui estou;))
Lendo e conhecendo Di Láscio, lembrei da Stela do patrocínio...
Lembrei de um poeminha meu tb; deixo aqui meu mimo pra vc!!

Céu e inferno todos os dias
minha reza é a poesia...
Grande bjo!!!

Welliton Oliveira disse...

que convulsão deliciosa.

Adriana Godoy disse...

Ninuska, vc é a própria pauliceia desvairada, no bom sentido.

Gosto demais de vir aqui, menina.

Beijo