segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

[Ano I, No. 14 - 2011] JAYME OVALLE

Casamento de Jayme Ovalle: da esquerda para a direita, Murilo Mendes, Anibal Machado, Ovalle, Manuel Bandeira e Augusto Frederico Schmidt.

Poema só para Jayme Ovalle
Manuel Bandeira

Quando hoje acordei, ainda fazia escuro
(Embora a manhã já estivesse avançada).
Chovia.
Chovia uma triste chuva de resignação
Como contraste e consolo ao calor tempestuoso da noite.
Então me levantei,
Bebi o café que eu mesmo preparei,
Depois me deitei novamente, acendi um cigarro e fiquei pensando…
- Humildemente pensando na vida e nas mulheres que amei.
*

FRAGMENTO
Fernando Sabino, Gente, escritos entre 1973 e 1974 para o Jornal do Brasil.

Um dia lhe [para Jayme Ovalle] mostrei qualquer coisa que havia escrito, e ele me chamou a atenção para um trecho que, na sua opinião, deveria ser cortado:

- Você colaborou. Um escritor de verdade não colabora.

E como eu protestasse, defendendo o que havia escrito:

- Você está errado. Quer que eu chore, para provar?

Tirou o monóculo e começou a chorar, um choro de criança, lágrimas grossas escorrendo dos olhos claros e tombando no prato. Estávamos num restaurante e os outros fregueses olhavam estupefatos, aquele senhor de cabelos grisalhos em pranto diante de mim. Veio o garçom, veio o próprio gerente para saber o que havia, e ele sempre a chorar, gaguejando entre soluços:

- Está convencido agora? Tenho ou não tenho razão?

Das histórias de Jaime Ovalle, fico com a impressão de que ele é aquele amigo de que Drummond fala em seu poema A Bruxa, leitor de Horácio e que, mesmo silenciosamente influencia.

Era capaz de reencontrar a inocência onde ela estivesse, com sua incrível capacidade de ver as coisas como se fosse a primeira vez. Um dia estávamos no Central Park, em Nova York, olhando as focas que brincavam no meio de um tanque. Muito sério, de luvas, chapéu e sobretudo, ele olhava para a frente naquele seu jeito meio duramente interrogativo de franzir uma das sobrancelhas em torno do monóculo.

- As focas são inocentes – falou, sério. – Não se incomodam de serem vistas assim, completamente nuas.
Naquele instante se aproximou de nós uma velha amiga e bateu-lhe cordialmente nas costas, de surpresa. 

Com o gesto inesperado, o monóculo se desprendeu do sobrolho (dizia que dava à língua portuguesa a última oportunidade de ainda usar esta palavra), tombou ao chão e se espatifou. Imperturbável, levou a mão ao bolsinho do colete, retirou outra lente, encaixou-a diante do olho e só então como se nada houvesse acontecido é que se voltou para cumprimentar a autora do gesto desastrado.
*


Ó, Jayme! És um Vale de improvisos!

Parte das famosas improvisações verbais de Jayme Ovalle foi salva graças às dificuldades financeiras do poeta Vinicius de Moraes, num entreato de sua vida diplomática, no Brasil. Disposto a amealhar alguns níqueis, propôs uma entrevista com o compositor ao suplemento Flan, do jornal Última Hora, em 1953 – ao lado do parceiro Otto Lara Resende. Amostras:

P – Por que Deus fez as mulheres feias?
R – As normalmente feias Deus fez para casar com homens bonitos. Quanto às irremediavelmente feias, foram feitas por Deus para povoar as igrejas de madrugada, para usarem grandes rosários e serem beatas.

P – Qual a posição política do demônio?
R – É da natureza do Demônio mudar de política conforme os acontecimentos.

P – Você, como católico, aceita o ato sexual independentemente do sentimento da procriação?
R – Eu sou contra qualquer burocracia.

P- Haverá sempre pobres no mundo?
R – Acho que sim… porque senão quem vai dar esmola aos ricos?

Os entrevistadores eram entusiastas da Nova Gnomonia, teoria de classificação da humanidade arquitetada pelo “místico” Jayme Ovalle, ajudado por sopros do arrebatado Augusto Frederico Schmidt. Cada categoria tinha seu anjo padroeiro. Para Vinicius, a Gnomonia “constitui a grande contribuição do Brasil à filosofia do conhecimento do universo”. Essa extraordinária filosofia ganhou registro de Manuel Bandeira, em crônica de 1931. Desde então influenciou platônicos, socráticos, kantianos, marxistas… Filosofia nada ortodoxa, a Gnomonia admite a transição de uma categoria para outra. Com traumas. À suma filosófica:

A NOVA GNOMIA
Manuel Bandeira, Crônicas da Província do Brasil

Tive conhecimento da nova gnomonia por uma conversa de café. O poeta Augusto Frederico Schimidt e o compositor Ovalle debatiam animadamente um ponto da nossa situação interna, particularmente a ação de certo homem político, quando o segundo, inclinando-se para a frente em atitude de advertência, colocou a mão direita no joelho do primeiro e proferiu gravemente:

- Seu Schimidt, vá por mim! Aquele sujeito é do exército do Pará.

Do exército do Pará? Que exército era esse que eu desconhecia? Ovalle explicou: o exército do Pará é formado por esses homenzinhos terríveis que vêm do Norte para vencer na capital da República; são habilíssimos, audaciosos, dinâmicos e visam primeiro que tudo o sucesso material, ou a glória literária, ou o domínio político.

Compreendi. O nome Pará não implica desdouro, senão honra para o grande Estado, torrão natal de homem-símbolo ou Anjo da grande categoria. O meu Pernambuco tem dado muita gente para o exército do Pará, talvez os seus soldados mais típicos.

Da categoria de exército do Pará passamos às demais, que são quatro, abrangendo em linhas gerais os principais tipos de caracteres humanos: os Dantas, os Kernianos, os Onésimos e os Mozarlescos.

Os Dantas são os bons (toda a gente quer ser Dantas), os homens de ânimo puro, nobres e desprendidos, indiferentes ao sucesso da vida, cordatos e modestos, ainda quando tenham consciência do próprio valor. 

Quem deu nome a este grupo foi o jovem jornalista San Tiago Dantas, cuja natureza aliás vai ser questão de debate no próximo 1º congresso na Nova Gnomonia, porque a muitos iniciados parece errada a categoria de Anjo atribuída ao sr. San Tiago (alguns o classificaram no exército do Pará). Não sofre dúvida que o senhor Prudente de Morais, neto (não o político residente em S. Paulo, mas o outro, poeta e crítico da revista Estética) está muito melhor qualificado para o papel de Anjo dos Dantas (uma prova luminosa e até com caráter de revelação está no fato de que, desconhecendo de todo a nova ciência e desejando adotar u m pseudônimo literário, escolheu o de Pedro Dantas com que subscrevia as crônicas literárias da revista A Ordem). O tipo mais perfeito que conheço nessa categoria é a falecida Elizabeth Leseur. Posso citar outros para instrução do público: São Francisco de Assis, Spinoza, o abade dos Noivos de Manzoni, ou mais perto de nós Auta de Souza, Capistrano de Abreu, Amadeu Amaral, a D. Carmo do Memorial de Aires.

Os Kernianos são os impulsivos por excelência. Indivíduos de bom coração, capazes de grande sacrifício pelos outros, deixam-se no entanto arrastar às vezes à prática dos atos mais condenáveis, não por maldade, mas por um impulso irresistível de cólera: ilustra-o bem o caso passado com um kerniano em Nova Pasárgada e é sempre citado como anedota já hoje clássica nesse ramo de estudos. Um empregado público de pequena categoria, irritado com a conduta impolida de uma viúva, não se conteve e lhe deu um pontapé no ventre, de que resultou a morte imediata, porque a infeliz estava grávida. Incontinenti arrependeu-se, arrancou os cabelos, pediu perdão ao cadáver, e sabendo que a viúva deixava onze filhos ao desamparo, tomou-os todos ao seu encargo, criou-os, educou-os com o mesmo carinho que dedicava aos próprios filhos: kerniano puro. O anjo dos kernianos é o Sr. Ari Kerner, autor de sambas e canções que têm alcançado grande voga. A classe é numerossísima. Byron e Verlaine foram Kernianos. Greta Garbo é Kerniana. Nobilíssimo exemplar é o sr. H. Sobral Pinto. Ribeiro Couto é um Kerniano. O sr. Paulo Ribeiro e Magalhães, idem. Kerniano foi o primeiro Imperador. Já Pedro II foi um Mozarlesco.

Difíceis de definir, sem magoar toda a classe, esses caracteres tão interessantes que são os Mozarlescos. Em primeiro lugar – por que assim são denominados? Os Mozarlescos são pessoas que se exprimem ou obram de molde a fornecer aos que os observam uma impressão de coisas consideráveis, ao que todavia não corresponde o conteúdo das suas palavras ou das suas ações. São homens de bem. Acreditam no sufrágio universal. Lêem os ensaios econômicos do sr. Mário Guedes. Manifestam decidido pendor pela pedagogia. Mas repito: por que Mozarlescos? O nome não pode derivar de Mozart, Wolfgang Amadeu, o grande. Este foi um dos tipos mais quintessenciados de Dantas, exemplar verdadeiramente único porque era um Dantas que se apresentava sob as espécies mais infantis e angélicas, naquele extremo limite em que os Dantas confinam de um lado com os Kernianos e por outro com os Onésimos, de que trataremos a seguir. Se houve alguém isento de Mozarlesco por causa da companhia do conselheiro Acácio, do Professor Everaldo Backeuser e outros Anjos classificados nessa categoria. No entanto há formas extremamente sutis e refinadas de Mozarlismos. O grande pintor Cícero Dias, apesar de se revoltar com a classificação (pretende ser um Dantas, embora dê em geral a impressão de Kerniano) é afinal de contas um Mozarlesco, como se depreende bem das suas luas lacrimejantes e da concepção da morte nos seus quadros. Guiraldes, o grande poeta argentino, autor de Don Segundo Sombra, a melhor obra de ficção sul-americana, sentindo-se morrer pediu uma dose de whisky. Como? Whisky na hora por excelência difícil e grave? E Guiraldes explicou aos parentes e amigos que precisava de muita coragem, o caso era muito sério: __ “Ahora hay que hablar com Dios!” Este, sim, não tinha nada de Mozarlesco.

Restam os Onésimos. O anjo da classe é um cavalheiro desse nome, que acercando-se abruptamente de uma roda de Dantas ligados pelas mais estreitas afinidades e que debatiam com o mais puro entusiasmo a questão da salvação do país pelo preparo das elites no sentido neotomista, lançou um frio indescritível na roda, causando evidente mal-estar. O Onésimo onde aparece é assim: duvida, sorri, desaponta; diante dele ninguém tem coragem de chorar. O seu sense of humour sempre vigilante é o terror dos Mozarlescos avisados. Não é que o faça por maldade: os Onésimos não são maus. O drama íntimo dos Onésimos é não sentirem entusiasmo por nada, não encontrarem nunca uma finalidade na vida. Não obstante, se as circunstâncias os colocam inesperadamente num posto de responsabilidade, podem atuar (não todos, é verdade) com o mais inflexível senso do dever. O sr. Gilberto Freire, por exemplo, é Onésimo. Em geral os humoristas são Onésimos. Não os humoristas nacionais, que esses pertencem todos ao exército do Pará (os srs. Mendes Fradique, Raul Pederneiras, Luis Peixoto, etc. Aporelli faz exceção, é Dantas). Mas os grandes humoristas, Sterne, Swift, Heine são Onésimos. O sr. João Ribeiro é um exemplo muito curioso de Onésimo. O escritor paulosta Couto de Barros, outro.

Eis em linhas gerais o arcabouço do novo sistema. Cumpre advertir que os tipos puros são raríssimos. Um Dantas pode revelar traços de Onésimos, de Mozarlesco, de Kerniano e até mesmo (mas isso raramente) de exército do Pará. Todavia um Mozarlesco nunca se revela Onésimo, salvo na capacidade de dar azar, o que é também atributo Onésimo. O que determina em última análise a classificação é a dominante. Convém igualmente salientar que do exército do Pará podem fazer parte tipos superiores da humanidade. Santo Inácio de Loiola e Anchieta, o padre Vieira, o padre Leonel da Franca, por exemplo, eram do exército do Pará.

Para mostrar a complexidade dos problemas ligados a esse ramo novo de pesquisas, basta citar algumas obras mais notáveis da sua rica bibliografia:

“Categorias gnomônicas” (Pedro Dantas);
“Do caráter kerniano de Judas” (Gilberto Freyre);
“Um charlus pode ser Dantas?” (Jaime Ovalle).
*

Fotografia publicada no Flan, o poeta Vinicius de Moraes acende o cigarro do "místico" Jayme Ovalle. Ao centro, o escritor Otto Lara Resende.

OVALLE
Manuel Bandeira

Estavas bem mudado.
Como se tivesses posto aquelas barbas brancas
Para entrar com maior decoro a Eternidade.

Nada de nós te interessava agora.
Calavas sereno e grave
Como no fundo foste sempre
Sob as fantasias verbais enormes
Que fazias rir os teus amigos e
Punham bondade no coração dos maus.

O padre orava:
- "O coro de todos os anjos te receba..."
Pensei comigo:
Cantando "Estrela brilhante
Lá do alto-mar!..."

Levamos-te cansado ao teu último endereço.
Vi com prazer
Que um dia afinal seremos vizinhos.
Coversaremos longamente
De sepultura a sepultura
No silêncio das madrugadas
Quando o orvalho pingar sem ruído
E o luar for uma coisa só.
*


A última viagem de Jayme Ovalle
Vinícius de Moraes

Ovalle não queria a Morte 
Mas era dele tão querida 
Que o amor da Morte foi mais forte 
Que o amor do Ovalle à vida. 

E foi assim que a Morte, um dia 
Levou-o em bela carruagem 
A viajar - ah, que alegria! 
Ovalle sempre adora viagem! 

Foram por montes e por vales 
E tanto a Morte se aprazia 
Que fosse o mundo só de Ovalles 
E nunca mais ninguém morria. 

A cada vez que a Morte, a sério 
Com cicerônica prestança 
Mostrava a Ovalle um cemitério 
Ele apontava uma criança. 

A Morte, em Londres e Paris 
Levou-o à forca e à guilhotina 
Porém em Roma, Ovalle quis 
Tomar a sua canjebrina. 

Mostrou-lhe a Morte as catacumbas 
E suas ósseas prateleiras 
Mas riu-se muito, tais zabumbas 
Fazia Ovalle nas caveiras. 

Mais tarde, Ovalle satisfeito 
Declara à Morte, ambos de porre: 
- Quero enterrar-me, que é um direito 
Inalienável de quem morre! 

Custou-lhe esforço sobre-humano 
Chegar à última morada 
De vez que a Morte, a todo pano 
Queria dar uma esticada. 

Diz o guardião do campo-santo 
Que, noite alta, ainda se ouvia 
À voz da Morte, um tanto ou quanto 

Que ria, ria, ria, ria...
*

Aquarela e Nanquim de Marc Chagall (biélorusso, 1887-1985)

Uma fábula rasa

Disse que era uma fábula estar ali com ele – e era. Não usou de muitas palavras, mas os gestos explodiram em curvas, aproximações, movimentos entre um realidade e sua pálida estrutura. Disse também que era bom não existir de onde veio, mas acontecer ali, vinda de mala e cuia, para mostrar a ele o que os bichos fazem quando falam. E então recitou Bandeira de cabo a rabo enquanto ele fazia o café.

- Sabes que Virgínia Woolf...

E não terminava a frase, porque mastigava numa só vez enredos, pedaços de milagre, baldeações entre Maiakovski, Baudelaire, Kafka, Anna Ahkmatova. E eles, eram, claro, bichos de um tipo de noite que até de dia, mesmo entre os homens das esquinas, soía acontecer. Eram os fabulosos para si mesmo, encantados que estavam entre si, e por romper com o roteiro apertado de uma palestra e o encontro com aquela cidade tão Brasil.

Escuta mais esta – ela não podia conter dentro de si tanta vida sem passar adiante, com urgência passional, o que doía guardar.
Era uma fábula:

Águia encontra cobra que se desentoca do buraco. Só a cabeça, para entender o mundo. Mas águia, agitada, tenta convencer que fique metade do corpo dentro, metade fora. Dá uns sobrevoos para se exibir, mas no fim, prefere, entre bicadas de advertência, que cobra seja apenas pela metade. A cobra, claro, não entende, mundo é mundo, tanto o de dentro quanto o de fora, e tanto faria estar toda fora ou toda dentro. Cobra continuaria cobra. Águia, águia. Mas estavam no meio da discussão e veio um vento e a vida ficou mais cheia de tudo. De serpentes e pássaros. De mendigos e reis. Cidades e mangues. Bichos e gentes. Lombras e lembranças.

Houve um instante de expectativa sem moral. Depois, passaram a amar tudo o que os envolvia, filmes, poemas, ventos, pequenas e grandes fomes, penetrações no escuro. Fiel é constatar o que fica. Mesmo o que parece fugir (Essa antimoral foi dita pouco antes de deixa-la no aeroporto, com a leveza mais que voo que ela, de bilhete, ia pegar). E só não foram felizes ou infelizes para sempre porque a história não tem fim.
*

8 comentários:

Unknown disse...

Riquíssimo post!

ADORO Manuel Bandeira.

Adorei tudo!

Obrigada,, Nininha!

Sempre dando um banho de cultura.

Beijos

Mirze

Unknown disse...

E eu que pensava que Jaime Ovalle era uma criação poética de Manuel Bandeira,


cheiro

André disse...

Obrigado pela honra, é um texto feliz de um momento feliz.

Adriana Godoy disse...

Ei, Ninuska. Vc leu o livro sobre o Jaime Ovalle, acho que do Humberto Werneck, se não me engano.

A minha tia Matia Lúcia Godoy, gravou um disco só com as músicas dele. maravilhoso.

Bom voltar aqui, menina.

Beijo

Aroeira disse...

nossa, que delícia isso!
bjão

Anônimo disse...

Ser poeta, de que vale,
Se não for para ser bom,
Ter da singeleza o dom
Como o tinha Jaime Ovalle?

Nina, abraço tigelúdico deste Nem- Tão-Santo-Nem-Tão-Sujo...

Adriana Riess Karnal disse...

OValle, eu moro no Vale...(são leo é um vale), desculpe o tracadalho, nina, vc sempre embelezando a vida, menina.

jozahfa disse...

Gostei muito dissos aís.