H-ortografias | António Saias

EX -HOMMO

           o homem está cinzento
já é quase terra
já é quase vento
está  triste

como freixo
à beira de rio
que secou há muito 

o homem
já se perdeu no tempo
des-existe
acendi um cigarro
e tu vieste

é bom
fumar a ler-te 
--------------------------------------

teus cabelos
caindo sobre os ombros
são cachos
de glicínias

para os dedos do vento
encherem
de carícias


Alguma coisa sobe como um vómito
É o vento

As uvas e o cão
A vide  o veneno velho   o velho
Que adormece com os olhos espetados
Na fasquia dos seus muitos anos miseráveis
As pulgas no alpendre
Na pocilga vazia
O choupo
De raízes cravadas na gengiva da casa de que  só eu sou interior

A hortelã nos pingos da torneira
A náusea da pausa vegetativa dos coentros
Os limões de umbigo
Os diques na caleira da leira de tomate

A  Peugeot cinzenta
Pelo vento e  pela noite
A grossa grade de portão
Guardada por cães de gonzos ferrugentos

Os velhos verticais no interior do pátio
Das carroças
                     As sinetas e as vozes
                      Das franjas das echarpes
                      Chamando os netos por entre minúsculos fios de ferro        
Caracóis nas listras
Vermelhas das peúgas dos miúdos
alguns graus de tédio no choro com que não respondem
         
Os chás nas chávenas
Sobre a falsa virgindade das toalhas
A memoria dos aventais brancos
Das criadas arrastando as socas  nos soalhos

Alguma coisa sobe como um vómito  :
É a cor no ecran
Da casa toda branca
Sem interior algum


Começo a ficar velho
E a ouvir repetidamente
As mesmas coisas

Ninguém me diz
Nada de novo
Os meus ouvidos sofrem

As palavras antigas
Repetidas ferem
Doem-me como às árvores
O vento sempre igual

Começo a ficar velho
Não há luz nas palavras
Ouvir-vos
Cada vez é mais andar no escuro

Há que lavar tudo amigos
As gargantas e as vozes
É tempo de deixarmos
De gritar contra muros

Dois poemas de 75

DIÁRIO DE FRANCISCO (Franco)

E mandei de imediato
Pedir o protocolo
E assinei na sua frente
A condenação à morte
De cinco dos mais novos
E legítimos filhos de Espanha

Ao meio-dia ordenei
Que fechassem a janela
Que dava para o Parque

E apanhassem o pássaro
Que tombara distante
                   
Que não mais cantaria
Para o meu banho morno
Em banheira de mármore
E estaria já frio
E seria uma nódoa
Sobre o chão muito limpo
De uma Rua do Parque

A minha poesia só pode
Ser esta coisa assim
Pobre  desajeitada
Inteligível e clara
Como objecto exposto à luz

Visível como vaca
A pastar num cercado
Tangível como um copo
Ou a erva de um prado

A minha poesia
Só é possível neste espaço
Nestas palavras gastas
Que não sabem sair
Do seu significado


CREPÚSCULO

Menino parco
Brinca no charco
Modela um barco
De jornal velho

Vê-se no espelho
Longo e refrato
Foge-lhe o barco
De escolho em escolho

Riem-lhe os olhos
De segurança

Menino parco
Mijando em arco
Vai no seu barco
E a tarde avança

SONHO AÉREO

Quanto mais quis ser
Aeróstato
Zepeline
Passarola  Balão

Mais me descubro frágil
Grácil
Efémera
bolinha de sabão





É  PRECISO

É preciso arrombar uma porta
É preciso inventar um caminho
É preciso uma leira cavada na horta
É preciso uma acha de fogo de azinho

É preciso um canhão da certeza de tudo
É preciso uma seara de raiva nos dedos
É preciso outro mundo outro mundo outro mundo
Sem brechas nem bruxas nem monstros nem medos


Minha memória do 11 de Setembro

os aviões as vidas
o ar quente os prédios
os centros de negócios
os incêndios

o cimento e o ferro
ardendo
os gritos das sirenes
o desespero da gente

os cães os gatos
os pardais fugindo
a luz do fogo
eu almoçava só
como se não fosse gente

magma de cimento
equipamentos de escritório e ferro
e alcatifas
lava
de betão e gente

eu almoçava – lembro-me perfeitamente -:
feito por mim
arroz de tomate
e jaquinzinhos fritos

mesmo que os não houvesse
eu ouvia gritos
mas disto estou seguro
como se fosse agora lembro

o voo dos aviões
determinado  recto
contra as sinistras torres
de World Trade Center

-----------------------------------------------------------
PÓ – EMA DE ELEIÇÕES

Vês como tu és?
Já viste aonde é que tens os pés?

Descobres mais alguém escrevendo
- nem que seja poemas –
À mesa dos Cafés?

Julgas o quê?:
Salvar o mundo
Bebendo mazagrans
Sorvendo capilés?
----------------------------------------------------------
FOGO

Seduz-me a luz
Das áscuas
O fumo à flor das brasas
Não é por acaso
Que chamamos fogos
Ao espaço que habitamos
- Casas
                   LUME

Companheiro
Irmão
Amigo
            Sem o teu calor
            Sem a tua luz
            Sem o teu fulgor
Sabe, lume
Ardo contigo  
----------------------------------------------------            
-MESTRE  BENTO

Mestre Bento Moleiro
Tem um moinho de vento
No Outeiro

Velas de pano
Mós pesadas de granito
Mói o dia inteiro
Há quem diga que mói
Até ao infinito

Mói tempo
Cada um vai lá
Com seu saco de trigo
Mestre Bento o moendo
Lhe devolve
O que sobra
Da maquia

Porém um dia
O trigo de cada um acaba
Mestre Bento
Não tem mais que moer
Que não seja
A sua própria nostalgia

De mestre Bento
Cliente é toda a gente
É toda a gente até um dia

Não é que a minha
Camisola preta
Atraia agora mais cabelos

Só que mais brancos os meus
Na camisola preta
É cada vez mais fácil vê-los

             1
documentar-me convenientemente sobre as coisas
as pedras por exemplo
saber-lhes história
geografia
geometria orgânica desenho

investigar-lhes formas
de sociabilidade  engenho
longevidade  fala

documentar-me convenientemente sobre as coisas
as pedras por exemplo
de que saliento
o sotaque

----------------------------------------------------
                        2
Whitman claro
e os negros de Brooklin
ou Pessoa e a estória rítmica
do rio da sua Terra

a mim resta-me lançar
raízes na calçada
desta esplanada suja

retirar parcimoniosamente macacos do nariz
e olhar o céu
na esperança vaga feliz
de que uma rima
surja

---------------------------------------
                      3
o automóvel é um boi mecânico
com seus cornos de aço
flancos de metal pintado

seus olhos são faróis de vidro
para toda a distância

desliza pelo asfalto
que é seu prado e pascigo

de verde erva sustenta
sua boca de ferro
seu ânus de aluminio
cancera com o tempo

não o conheceram
nem Camões nem Gonzaga
porque o automóvel
é um boi recente

seu irmão avião
é um tal boi assírio
a quem os deuses deram
asas de coleóptero

só os homens antigos
não inventaram ainda
um boi-libélula
em jeito de helicóptero

a bicicleta é uma vaca cornuda
sobre a qual andar
faz calos no traseiro

descende de uma lenda
ou grega ou bárbara
ou romana

o eixo desta vaca
é ferro
verdadeiro



Escrever muito?

escreverei
até que a esferográfica me doa

e no papel se rasguem feridas
como em joelhos
de aprendiz
de ciclista


espero à porta do quarto
que te levantes branca
de calor letargo

é Março
todo o céu está vermelho
quase o Sol a romper

o dia faz a barba


Escrever muito?

escreverei
até que a esferográfica me doa

e no papel se rasguem feridas
como em joelhos
de aprendiz
de ciclista


CAMINHOS



todos os caminhos
a partir de nós vão dar a Roma

e os de Roma?
a partir de Roma?
todos vêm
dar a nós?

Algum vem dar a nós?
*

useiro e vezeiro

é o cavalheiro simpático que está sempre a mandar-me cavar batatas. podia dar-lhe para pior

hoje mesmo comecei a manhã cumprindo o seu reiterado voto.
só que em vez de cavar batatas - deu-me para arrancar cebolas
as batatas já estão armazenadas, a despeito do mau ano hortícola, devo ter de umas e outras provisão bastante para todo ao ano

mas sempre pensando
:
o que é que um sacana destes terá contra a minha colaboração modesta no "Mais Évora"?
- vai mas é cavar batatas

pensar em concreto, uma tarefa assim como tomar as refeições : ver-se ao espelho, pentear-se, lavar as mãos. ajeitar a cadeira, sentar-se - penso sinceramente que a coisa não funciona.
comigo pelo menos não.
penso, caro inimigo, exatamente com mais acuidade, quando cuido das plantas.
para desapontamento seu, quando, se quiser, estou a cavar batatas

esta manhã, por exemplo, pensava esta coisa muito simples.
que pode dar que pensar, se quisermos perder algum tempo a pensar nela

e não tem nada a ver consigo. Sabemos que o cavalheiro é um cidadão exemplar, tem passado a vida a produzir coisas verdadeiramente benéficas para a Humanidade.
aposto que até se justificará
:
"é para isso que me pagam"

entendidos?

aí vai então o que pensava enquanto recolhia a minha aloirada safra de cebolas
:
há os que lutam por matar a fome ao Mundo
e os que
se matam por matar o Mundo à fome

claro que o cavalheiro acharia preferível que eu continuasse a colher cebolas em vez de estar aqui a debitar vulgaridades.
mas como o tempo sobejou da tarefa humilde de luta pela sobrevivência,
aqui estou ainda a mandá-lo não "cavar batatas" - como voto expresso de você -

mas "para um certo sítio que eu cá sei"


Alguma coisa sobe como um vómito
É o vento

As uvas e o cão
A vide  o veneno velho   o velho
Que adormece com os olhos espetados
Na fasquia dos seus muitos anos miseráveis
As pulgas no alpendre
Na pocilga vazia
O choupo
De raízes cravadas na gengiva da casa de que  só eu sou interior

A hortelã nos pingos da torneira
A náusea da pausa vegetativa dos coentros
Os limões de umbigo
Os diques na caleira da leira de tomate

A  Peugeot cinzenta
Pelo vento e  pela noite
A grossa grade de portão
Guardada por cães de gonzos ferrugentos

Os velhos verticais no interior do pátio
Das carroças
                     As sinetas e as vozes
                      Das franjas das echarpes
                      Chamando os netos por entre minúsculos fios de ferro        
Caracóis nas listras
Vermelhas das peúgas dos miúdos
Quinze graus de tédio no choro com que não respondem
         
Os chás nas chávenas
Sobre a falsa virgindade das toalhas
A memoria dos aventais brancos
Das criadas roçando nos soalhos

Alguma coisa sobe como um vómito  :
É a cor no ecran
Da casa toda branca
Sem interior algum


Começo a ficar velho
E a ouvir repetidamente
As mesmas coisas

Ninguém me diz
Nada de novo
Os meus ouvidos sofrem

As palavras antigas
Repetidas ferem
Doem-me como às árvores
O vento sempre igual

Começo a ficar velho
Não há luz nas palavras
Ouvir-vos
Cada vez é mais andar no escuro

Há que lavar tudo amigos
As gargantas e as vozes
É tempo de deixarmos
De gritar contra muros

Dois poemas de 75

DIÁRIO DE FRANCISCO (Franco)

E mandei de imediato
Pedir o protocolo
E assinei na sua frente
A condenação à morte
De cinco dos mais novos
E legítimos filhos de Espanha

Ao meio-dia ordenei
Que fechassem a janela
Que dava para o Parque

E apanhassem o pássaro
Que tombara distante
                   
Que não mais cantaria
Para o meu banho morno
Em banheira de mármore
E estaria já frio
E seria uma nódoa
Sobre o chão muito limpo
De uma Rua do Parque

A minha poesia só pode
Ser esta coisa assim
Pobre  desajeitada
Inteligível e clara
Como objecto exposto à luz

Visível como vaca
A pastar num cercado
Tangível como um copo
Ou a erva de um prado

A minha poesia
Só é possível neste espaço
Nestas palavras gastas
Que não sabem sair
Do seu significado


CREPÚSCULO

Menino parco
Brinca no charco
Modela um barco
De jornal velho

Vê-se no espelho
Longo e refrato
Foge-lhe o barco
De escolho em escolho

Riem-lhe os olhos
De segurança

Menino parco
Mijando em arco
Vai no seu barco
E a tarde avança

SONHO AÉREO

Quanto mais quis ser
Aeróstato
Zepeline
Passarola  Balão

Mais me descobri frágil
Grácil
Efémera
bolinha de sabão





É  PRECISO

É preciso arrombar uma porta
É preciso inventar um caminho
É preciso uma leira cavada na horta
É preciso uma acha de fogo de azinho

É preciso um canhão da certeza de tudo
É preciso uma seara de raiva nos dedos
É preciso outro mundo outro mundo outro mundo
Sem brechas nem bruxas nem monstros nem medos


Minha memória do 11 de Setembro

os aviões as vidas
o ar quente os prédios
os centros de negócios
os incêndios

o cimento e o ferro
ardendo
os gritos das sirenes
o desespero da gente

os cães os gatos
os pardais fugindo
a luz do fogo
eu almoçava só
como se não fosse gente

magma de cimento
equipamentos de escritório e ferro
e alcatifas
lava
de betão e gente

eu almoçava – lembro-me perfeitamente -:
feito por mim
arroz de tomate
e jaquinzinhos fritos

mesmo que os não houvesse
eu ouvia gritos
mas disto estou seguro
como se fosse agora lembro

o voo dos aviões
determinado  recto
contra as sinistras torres
de World Trade Center

-----------------------------------------------------------
PÓ – EMA DE ELEIÇÕES

Vês como tu és?
Já viste aonde é que tens os pés?

Descobres mais alguém escrevendo
- nem que seja poemas –
À mesa dos Cafés?

Julgas o quê?:
Salvar o mundo
Bebendo mazagrans
Sorvendo capilés?
----------------------------------------------------------
FOGO

Seduz-me a luz
Das áscuas
O fumo à flor das brasas
Não é por acaso
Que chamamos fogos
Ao espaço que habitamos
- Casas
                   LUME

Companheiro
Irmão
Amigo
            com o teu calor
            a tua luz
            o teu fulgor
Sabe, lume
Ardo contigo  
----------------------------------------------------            
-MESTRE  BENTO

Mestre Bento Moleiro
Tem um moinho de vento
No Outeiro

Velas de pano
Mós pesadas de granito
Mói o dia inteiro
Há quem diga que mói
Até ao infinito

Mói tempo
Cada um vai lá
Com seu saco de trigo
Mestre Bento o moendo
Lhe devolve
O que sobra
Da maquia

Porém um dia
O trigo de cada um acaba
Mestre Bento
Não tem mais que moer
Que não seja
A sua própria nostalgia

De mestre Bento
Cliente é toda a gente
É toda a gente até um dia

Não é que a minha
Camisola preta
Atraia agora mais cabelos

Só que mais brancos hoje
Na camisola preta
É cada vez mais
fácil vê-los

             1
documentar-me convenientemente sobre as coisas
as pedras por exemplo
saber-lhes história
geografia
geometria orgânica desenho

investigar-lhes formas
de sociabilidade  engenho
longevidade  fala

documentar-me convenientemente sobre as coisas
as pedras por exemplo
de que saliento
o sotaque

----------------------------------------------------
                        2
Whitman claro
e os negros de Brooklin
ou Pessoa e a estória rítmica
do rio da sua Terra

a mim resta-me lançar
raízes na calçada
desta esplanada suja

retirar parcimoniosamente macacos do nariz
e olhar o céu
na esperança vaga feliz
de que uma rima
surja

---------------------------------------
                      3
o automóvel é um boi mecânico
com seus cornos de aço
flancos de metal pintado

seus olhos são faróis de vidro
para toda a distância

desliza pelo asfalto
que é seu prado e pascigo

de verde erva sustenta
sua boca de ferro
seu ânus de aluminio
cancera com o tempo

não o conheceram
nem Camões nem Gonzaga
porque o automóvel
é um boi recente

seu irmão avião
é um tal boi assírio
a quem os deuses deram
asas de coleóptero

só os homens antigos
não inventaram ainda
um boi-libélula
em jeito de helicóptero

a bicicleta é uma vaca cornuda
sobre a qual andar
faz calos no traseiro

descende de uma lenda
ou grega ou bárbara
ou romana

o eixo desta vaca
é ferro
verdadeiro



UM POEMA  da Reforma agrária

                                           LA TIERRA TUYA ES MIA
                                           TODOS LOS PIES LA PISAN
                                            NADIE LA TIENE, NADIE

                                                                   (Nicolas  Guillén)

Diz-me, camponês,  diz-me
Que domínios sonhas – Alentejos –
Quantas terras, fincas
Herdades queres?

Que sem-limites  mapas
Esboças
Farms  quintas
Machambas  roças?

A que países  continentes
Ilhas  brasis
Áfricas  territórios
Aspiras
Para a desmedida
Força dos teus braços?

Calma  camponês  calma
Força e calma
Que não demora a Terra
será pelas tuas mãos
nosso Jardim e seara


espero à porta do quarto
que te levantes branca
de calor letargo

é Março
todo o céu está vermelho
quase o Sol a romper
o dia faz a barba


Escrever muito?

escreverei
até que a esferográfica me doa

e no papel se rasguem feridas
como em joelhos
de aprendiz
de ciclista


CAMINHOS

todos os caminhos
a partir de nós vão dar a Roma

e os de Roma?
a partir de Roma?
todos vêm
dar a nós?

Algum vem dar a nós?

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António Joaquim Carreiras Saias, nascido no Alentejo, Portugal, em 1938. Engenheiro técnico agrário, licenciado em Sociologia e Mestre em Ecologia Humana. Hoje aposentado de tudo – exceto da vida, por enquanto. Colaborou em vários jornais de Moçambique; na Revista Colóqquio/ Letras, da Fundação Gulbenkian, em Lisboa. Tem poemas musicados, por Fernando Lopes Graça e José Mello. Publicou QUADRA P´RA PULARES – esgotado e em processo de reedição. Acredita num mundo melhor, e esforça-se para que ele emerja o mais cedo possível.


Um comentário:

M.Lourdes Barnabé disse...

Bonito! gostei imenso de ler e mais ainda do citado " Acredita num mundo melhor, e esforça-se para que ele emerga o mais cedo possível".