CORRESPONDÊNCIAS, EM LUGAR DE EDITORIAL
Nina Rizzi
Yinka Shonibare (britânico-nigeriano, 1963-), Gallantry and Criminal Conversation, 2002. Siga com Dangerous
Games, de Marina Abramovic, da série Arte do
Mundo: Histórias sobre Direitos Humanos, inspirada na Declaração Universal
dos Direitos Humanos, de 2008.
ARTE: NOVOS
HORIZONTES
Os acontecimentos
de 11 de setembro de 2001 mudaram o mundo. O seu impacto na arte está, talvez,
ainda nas suas primeiras fases, mas trouxe à tona novas perspectivas globais.
Talvez as mais pertinentes sejam os objetivos e ideais do Pós-Colonialismo - um
movimento galvanizado pelo Orientalismo de Edward Said, segundo o
qual o Ocidente tem sistematicamente construído a ideia de um Oriente
subalterno e inferior - ou "outro"; os países ocidentais colonizaram
o mundo a partir do século XVI para explorar o potencial comercial dos
territórios não ocidentais, pois embora a maioria dos países tenha agora a sua
independência, a constante posição econômica dominante por parte da Europa
e dos EUA geralmente coloca os interesses do Ocidente acima dos demais; o
Pós-Colonialismo visa corrigir este desequilíbrio -, comparado com as lutas das
sociedades em todo o mundo, as preocupações da arte ocidental - desde a
academia ao Pós-Modernismo, parecem marginais. Os artistas não ocidentais, com
as suas próprias heranças e agendas, estão a ficar cada vez mais em evidência.
HIBRIDISMO
Anish Kapoor (indiano, 1954-), Untitled (3), 1988, Color aquatint. Siga com Inverno, de Carito e Os Poetas Elétricos.
O Objetivo do
Pós-Colonialismo é igualar o estatuto econômico e cultural das sociedades não
ocidentais presentes e passadas. Levanta questões de identidade, consciência
étnica, classe e gênero através de um vasto espectro de circunstâncias. Para os
artistas com uma herança não ocidental, com antecedentes de diáspora,
colocam-se questões sobre a forma e interpretação da expressão artística e
cultural. Existe um argumento de que o fenômeno do Pós-Modernismo é
exclusivamente ocidental e de pouca importância para as culturas não
ocidentais. Se é este o caso, então como deveremos ver a arte no século XXI?
Alternativamente as liberdades de expressão geradas na pós-modernidade podem
oferecer uma nova e abrangente plataforma para futuros artistas de todo o
mundo.
As respostas às
questões levantadas pelos estudos pós-coloniais na literatura têm sugerido o
hibridismo como um caminho a seguir. Artistas, tanto ocidentais como não
ocidentais, têm-se inspirado nas formas artísticas para lá das fronteiras
culturais. Recentemente, por exemplo, Anish Kapoor (indiano-britânico,
1954-), que nasceu na Índia, e Yinka Shonibare, que nasceu na Inglaterra
de pais nigerianos, recorreram à sua herança cultural para as suas obras.
Shonibare explora pinturas de cânone ocidental a partir de uma perspectiva pós-colonial,
enquanto Kapoor recorre a cores e texturas da Índia nas suas obras.
CAMÕES NA ILHA DE MOÇAMBIQUE
Jorge de Sena, Camões Dirige-se aos seus Contemporâneos, 1973
É pobre e já foi
rica. Era mais pobre
quando Camões aqui
passou primeiro,
cheia de livros a
cabeça e lendas
e muita estúrdia de
Lisboa reles.
Quando passados
nele os Orientes
e o amargor dos vis
sempre tão ricos,
aqui ficou, isto
crescera, mas
a fortaleza ainda
estava em obras,
as casas eram
poucas, e o terreno
passeio descampado
ao vento e ao sol
desta alavanca
mínima, em coral,
de onde saltavam
para Goa as naus,
que dela vinham
cheias de pecados
e de bagagens ricas
e pimentas podres.
Como nau nos
baixios que aos Sepúlvedas
deram no amor corte
primeiro à vida,
aqui ficou sem nada
senão versos.
Mas antes dele,
como depois dele,
aqui passaram
todos: almirantes,
ladrões e
vice-reis, poetas e cobardes,
os santos e os
heróis, mais a canalha
sem nome e sem
memória, que serviu
de lastro,
marujagem, e de carne
para os canhões e
os peixes, como os outros.
Tudo passou aqui ─
Almeidas e Gonzagas,
Bocages e
Albuquerques, desde o Gama.
Naqueles tempos se
fazia o espanto
desta pequena
aldeia citadina
de brancos, negros,
indianos e cristãos,
e muçulmanos,
brâmanes, e ateus.
Europa e África, o
Brasil e as Índias,
cruzou-se tudo aqui
neste calor tão branco
como do forte a cal
no pátio, e tão cruzado
como a elegância
das nervuras simples
da capela pequena do
baluarte.
Jazem aqui em
lápides perdidas
os nomes todos
dessa gente que,
como hoje os
negros, se chegava às rochas,
baixava as calças e
largava ao mar
a mal-cheirosa
escória de estar vivo.
Não é de bronze,
louros na cabeça,
nem no escrever
parnasos, que te vejo aqui.
Mas num recanto em
cócoras marinhas,
soltando às ninfas
que lambiam rochas
o quanto a fome e a
glória da epopeia
em ti se digeriam.
Pendendo para as pedras
teu membro se
lembrava e estremecia
de recordar na
brisa as cróias mais as damas,
e versos de soneto
perpassavam
junto de um cheiro
a merda lá na sombra,
de onde n’alma
fervia quanto nem pensavas.
Depois, aliviado,
tu subias
aos baluartes e
fitando as águas
sonhavas de outra
Ilha, a Ilha única,
enquanto a mão se
te pousava lusa,
em franca
distracção, no que te era a pátria
por ser a ponta da
semente dela.
E de zarolho não
podias ver
distâncias
separadas: tudo te era uma
e nada mais: o
Paraíso e as Ilhas,
heróis, mulheres, o
amor que mais se inventa,
e uma grandeza que
não há em nada.
Pousavas n’água o
olhar e te sorrias
─ mas não
amargamente, só de alívio,
como se te limparas
de miséria,
e de desgraça e de
injustiça e dor
de ver que eram tão
poucos os melhores,
enquanto a caca
ia-se na brisa esbelta,
igual ao que se
esquece e se lançou de nós.
Julho 72
AS NOVAS LEIS
Fernando Lemos, Teclado Universal, 1963
Atrás de qualquer
porta
está sempre o mar
alto que me espreita
Ou então a capa em
que o vento abate
a dúvida ou a
suspeita
Linhas rectas
seguem cidades
quebrando fazendo
nós
quando um homem
lança mão num estrado
de abelhas
completamente sós
Criaram-se novas
leis
novos modelos de
calçado
Fotografias com
cores
décors do
patriarcado
Mas as facas de
cortar fruta
que correm a praia
de extremo a extremo
dançam em pontas
sobre o pequeno
E as mães que já
não sabem
fazer as suas
contas
deitam-se ao mar
pelo que vêem
e julgam-no sereno
Saem dos astros pés
das ondas mãos
a taparem os rostos
os medos
As fardas que andam
nuas
sobram armas
lugares amenos
O mundo não previa
tanto
e esgotou-se a
lotação
Vão pelos canos
correndo pardais cegos
como convém à
perseguição
Criaram-se novas
leis
há pânico pelas
nossas varandas
nascem entretanto
árvores nuas
tantas
Mas os dentes ainda
são de pedra
apesar da nova lei
que os não respeita
Embora a máquina de
fazer peças para novas peças
seja o mar alto que
atrás da porta me espreita.
Gerald Laing (inglês, 1936), Estudo para Cappricio, 2005. Coleção particular. Em resposta aos abusos de prisioneiros no Iraque, Laing usa formas de Pop Art para simbolizar o imperialismo dos EUA e levantar preocupações sobre o seu papel político no Iraque. O uso da arte para o comentário e sátira políticos tornou-se de novo uma importante forma de expressão artística.
FRAGMENTO
Henfil, Diretas Já! Ed. Record, 1984.
Visitava Reagan o
Brasil. Os colegas repórteres e os equipamentos das televisões NBC, CBS e ABC
estavam acampados em salas e corredores cedidos pela TV Globo de São Paulo. Um
dia...
Um dia eu vinha
chegando e notei que na porta estavam vários deles olhando para vários nossos.
Na medida em que eu ia me aproximando, ia crescendo um calor na nuca, que é o
que me dá quando fico constrangido.
Mãe, os vários
nossos estavam vestidos tradicionalmente: calças Lee, tênis Nike ou botas John
Wayne, T-shirts com inscrições da
Chicago University, I Love NY, Win. Os vários nossos, com seus óculos ray-ban porsches e relógios digitais fliperama,
estavam reunidos a contemplar meia dúzia de Hondas, Yamahas, suas maravilhosas
cilindradas e capacetes espaciais.
E os vários deles?
Os americanos estavam vestidos com aquelas calças de casimira, camisas brancas
bem largas de algodão, sapatões de couro, meias brancas, alguns suspensórios e
com as correntes dos relógios de bolso à mostra. Tudo vovô Rodrigo.
Os vários nossos
eram magrinhos, chupadinhos, pequeninhos e nos ouvidos portavam headphones, walkmen.
Os vários deles
eram fortes, grandes e nos olhos portavam um olhar... aquele olhar da gente
quando contempla o filhinho de 3 anos usando de macaquice os sapatões do papai.
Ai, que
constrangimento. Nós vestidos como imaginamos que sejam vestidos os americanos,
banhados dos pés aos ouvidos pelas lojas do shopping
center. E os americanos reais ali, vestidos como nossos primos de Conceição
do Mato dentro.
Que respeito poderiam
ter eles por nós? Que dignidade nacional podemos exibir na mesa do FMI? Era ver
os olhos deles, divertidos, observando a chegada do novo mico que era eu e
minha calça Levis, minha camiseta Hateras Cape e meu gingado ritaliano.
Mas a que vem este
romance? Vem da exigência do FMI para nos emprestarem dólares. Sem o menor
pudor, exigem que facilitemos mais ainda a remessa de lucros das multinacionais
para o exterior e que eliminemos as restrições ao envio de royalties (o que pagamos para usar as marcas deles nas nossas
calças, camisas, carros, etc.) para o exterior.
Pois bem, que
resposta deu a nação a este ato de pura chantagem e pirataria?
A mesma que vi ao
lado da cena que descrevi. Os vários nossos bebendo Coca-Cola e os vários
deles, os americanos, bebendo suco... o nosso suco.
Quer saber?
Somos uma nação de
130 milhões de Delfins Netto!
O CAVALO DE RUUSKANEN
Bertolt Brecht. Poemas: 1913-1956; trad. Paulo César de
Souza. Ed. 34, 2000.
Ao chegar o
terceiro inverno da crise do mundo
Os camponeses de
Nivala derrubaram árvores como de costume
E como de costume
os cavalos pequenos arrastaram os troncos de madeira
Até os rios, mas
este ano
Receberam apenas
cinco marcos finlandeses por um tronco, o preço portanto
De um pedaço de
sabão. E ao chegar a quarta primavera da crise
Foram leiloadas as
propriedades dos que não haviam pago os impostos no outono.
E os que haviam
pago não puderam comprar rações para seus cavalos
Indispensáveis no
trabalho da floresta e do campo
De modo que as
costelas dos cavalos apontavam no
Pêlo sem lustre, e
então o magistrado de Nivala
Foi ao camponês
Ruuskanen, em seu campo, e falou
Com autoridade:
“Você não sabe que existe uma lei que
Proíbe a judiação de
animais? Olhe seu cavalo. As costelas
Estão à mostra.
Este cavalo está doente
E deve ser morto”.
E foi embora. Mas três dias depois
Ao voltar, ele viu
Ruuskanen novamente
Com seu cavalo
esquálido no campo minúsculo, como se
Nada tivesse
acontecido e não houvesse lei nem magistrado.
Aborrecido
Enviou dois guardas
com ordens estritas
De tomar o cavalo a
Ruuskanen e levar
O animal maltratado
imediatamente ao matadouro.
Mas os guardas,
puxando o cavalo de Ruuskanen
Através da aldeia,
viam, olhando em torno
Cada vez mais
camponeses saindo das casas
Seguindo-os atrás
do cavalo, e no fim do povoado
Pararam, inseguros,
e o camponês Niskanen
Um homem devoto,
amigo de Ruuskanen, sugeriu
Que a vila
arranjasse alguma ração para o cavalo, de modo que
A matança não fosse
necessária. Então, em vez do cavalo
Os guardas levaram
consigo de volta, ao magistrado amante dos bichos
O camponês Niskanen
com sua feliz mensagem
Em favor do cavalo
de Ruuskanen. “Ouça, senhor magistrado”, disse ele
“Este cavalo não
está doente, apenas sem ração, e Ruuskanen
Morrerá de fome sem
seu cavalo. Mate o cavalo
E logo terá que
matar o próprio homem, senhor magistrado.”
“Olhe como fala
comigo”, disse o magistrado. “O
Cavalo está doente
e lei é lei, por isso será morto.”
Preocupados
Voltaram os dois
guardas com Niskanen
Retiraram do
estábulo de Ruuskanen o cavalo de Ruuskanen
Prepararam-se para
levá-lo ao matadouro, mas
Ao chegarem
novamente à saída do lugar, lá estavam
Cinquenta
camponeses como se fossem grandes pedras, e
Olhavam em silêncio
para os dois guardas. Em silêncio
Deixaram estes o
cavalo velho na saída do lugar.
E sempre em
silêncio
Os camponeses de
Nivala conduziram o cavalo de Ruuskanen
De volta ao
estábulo.
“Isto é rebelião”,
disse o magistrado. Um dia depois
Uma dúzia de
guardas com rifles chegou com o trem de Oulu
A Nivala, a vila
tão agradavelmente situada
Rodeada de prados,
apenas para demonstrar
Que lei é lei.
Naquela tarde
Os camponeses
retiraram das paredes nuas
Seus fuzis,
pendurados junto aos quadros
Pintados com frases
bíblicas. Os velhos fuzis
Da guerra civil de
1918, que lhes haviam distibuído
Para usar contra os
vermelhos. Agora
Apontavam-nos
contra os doze guardas
De Oulu. Naquela
mesma noite
Trezentos
camponeses, vindos de muitas
Aldeias vizinhas,
sitiaram a casa do magistrado
Na colina perto da
igreja. Hesitante
O magistrado
apareceu na escada, acenou com a mão branca e
Falou do cavalo de
Ruuskanen com palavras bonitas
Prometendo deixá-lo
viver, mas os camponeses
Já não falavam do
cavalo de Ruuskanen, mas sim exigiam
Que os leilões
cessassem e que os impostos
Fossem perdoados.
Amedrontado até a morte
O magistrado
correu ao telefone, pois os camponeses
Haviam esquecido
não apenas que havia uma lei, mas também
Que havia um
telefone na casa do magistrado, e agora ele telefonava
Seu grito de
socorro a Helsinque, e na mesma noite
Chegaram de
Helsinque, a capital, em sete veículos
Duzentos soldados
com metralhadoras, na frente
Um tanque. E com
esta máquina de guerra
Foram derrotados os
camponeses, açoitados na Casa do Povo
Seus líderes
arrastados ao Tribunal de Nivala e condenados
A um ano e meio de
prisão, para que a ordem
Fosse restaurada em
Nivala.
Mas sobretudo, em
seguida somente
O cavalo de
Ruuskanen foi anistiado
Por intervenção
pessoal do Ministro do Estado
Em resposta às
muitas cartas recebidas.
outro tratado de paz
nina rizzi, inédito
o espigão vai ser
reformado antes que possamos ver os crepúsculos.
foi lá que um
deus-menino me olhou as lágrimas
e seguiu pra
califórnia antes que pudéssemos fazer, além de ser, amor.
enquanto ele não
volta, eu não voo, enquanto não me arrancam o espigão
flerto co'as moças
nuinhas, nuinhas, brincando de deusas.
CHIMAMANDA ADICHIE: O PERIGO DE UMA
ÚNICA HISTÓRIA
*
FRAGMENTO DE UMA OBRA INÉDITA (E QUE
PERMANECERÁ NA GAVETA)
Fernando
Monteiro
Em 1890, Joseph Conrad foi hóspede
de Roger Casement, no Congo, durante
duas semanas. Eu não sabia disso, e foi a anotação de Storrs que me pôs na pista
do encontro do diplomata (mais tarde enforcado) com o autor de O coração das trevas.
Nas suas notas de viagem, Conrad
deixou registrada a boa impressão que teve daquele anfitrião talvez interessado
em obter a adesão do escritor à campanha contra os abusos sofridos pelos negros
africanos. Posteriormente, mudaria um pouco a sua opinião — um pouco antes da
execução de Casement, em 1916 —, ao manter a lembrança de Roger como a de um
“bom companheiro em se tratando do tipo de companhia que requer uma região como
a savana selvagem” (o que o sempre preciso Conrad queria dizer com essa vaguedad? Por que naquela região, e não noutras, Casement seria esse tipo — qual? —
de “companheiro” para lugares como as savanas, as selvas e as cidades precárias
do Congo do fim do século dezenove?)... É, no mínimo, uma coisa
propositadamente desfocada, ao se escrever sobre um homem como Casement,
executado pelo, digamos, “patriotismo errado” — para os novos compatriotas do
polonês auto-exilado.
Com as nuances conradianas típicas
(ou seja, um misto de hesitação e desconfiança), ficamos sabendo que, para o
ex-capitão da marinha mercante, o futuro diplomata condenado por alta traição
era “muito emocional e uma personalidade verdadeiramente trágica”, conforme ainda
tergiversa o criador de Lord Jim,
compondo aquelas suas frases numa espécie de limiar de opinião, de limbo de
impressões ao mesmo tempo desconfiadas e fascinadas diante de personalidades
que se afirmam um pouco tarde demais (é o caso de “Jim”, precisamente).
Ainda está para se escrever um
estudo sobre o Conrad que jamais se sentiu muito seguro de haver se tornado um
“inglês”, após haver deixado de ser eslavo não por completo, talvez (ou daquela
forma cabal como alguém se transforma noutro, entre dois espelhos que refletem
o mesmo homem, com dois rostos olhando em direções opostas, na sombra que cai
sobre um convés de conversas convencionais sobre lembranças do mar “largo o
bastante para nele se poder dizer a verdade”).
O que Lawrence iria escrever sobre
Conrad? Digo, sobre
Casement?
Idéia interessante, a
involuntária aqui no fundo desse lapso: “Lawrence escrevendo sobre Conrad”.
Pergunta: Conrad escreveu sobre Lawrence?
Thomas Edward foi um personagem conradiano
típico, de carne e osso: um “Lord Jim” da vida real, encarnado num scholar de Oxford. Bem, na única vez em
que se referiu a Lawrence, o escritor usou quase os mesmos termos das suas
impressões sobre o irlandês pendurado pelo pescoço. Isso foi ao tempo em que o
“herói” retornara da louca aventura na Arábia, viajando ao lado de Ronald
Storrs para Jeddah, no coração do Hedjaz cerrado entre as portas islâmicas,
quando a pequena obra-prima começa com o “jovem coração em dúvida sobre si
próprio — diz o capitão Conrad —, um coração sincero traído pela velhice do
mundo”...
As mesmas cismas do sentimento vago
pregadas nas palavras como títulos de nobreza ao contrário, antecipando más
notícias sobre o passado (nomes falsos, nascimentos irregulares, dívidas
impagáveis, garrafas de bebida como desjejum em casas alugadas etc; a lista
pode ser longa e fastidiosa).
Você podia confessar ao mar o “seu
segredo” – e Conrad fará sempre mistério, é claro, sobre o quão secreto é esse
segredo (“murmurado para a sombra de névoa da linha de algumas palmeiras
borradas pela fumaça dos nativos”), naquela sua forma de manejar o inglês para
aumentar incertezas e instilar insegurança sobre a aparente verdade de “fatos”
que não são realmente o que parecem, quer como fatos reais ou inventados (que
raio de luz vaga pela divisória linha divisória de gaze da literatura escrita
como uma recordação borrada?)... e, lógico, ele hesita, finge que ainda não
sabe se quer, mesmo, expressar uma opinião, avançar um comentário, dizer “olhe,
eu estava lá, mas, bem não vi muita coisa, ou pensei ter visto algo que me
impressionou porque eu era jovem”...
Aqui está um homem sentado no lado escuro de
algum terraço virado de face para a noite forrada do odor de jasmins e charutos
caros (a hesitação se tornará parte do seu estilo de aproximação entre curiosa
e temerosa das coisas). O leitor se debruça para ouvir melhor, apreender o
significado de um algum segredo sobre a África — e o capitão se retira para
dentro da alma misteriosa dos seus personagens, com todos os “segredos” que o
mar refuga entre conchas, latas de conserva e preservativos hoje usados pelos
falsos nativos das savanas ou das ilhas de sombras simplesmente poluídas, nada
mais. Oh, sim, porque se tornou impossível ter um destino, e até viver uma vida
real entre anúncios de excursões a ex-colônias cujos roteiros convidam para
trilhar uma “Lawrence’s Journey” na Jordânia, saindo de Ákaba, no Mar Vermelho,
até chegar aos recortes (de tirar o fòlego) da bela mesquita omíada de Damasco,
passados os antigos aquedutos romanos, de onde se deveria seguir em frente rumo
à prefeitura improvisada, de onde “El Aurens” governou (?) a cidade por alguns
dias – até entrar em colapso, trocar de roupa e pedir permissão para se retirar
do teatro de guerra da Frente Oriental (com Allenby ali, era mais do que nunca
um teatro de preparação do Vice-Reinado da Índia)... Após os idealistas sonhadores, os
colonialistas práticos estavam chegando para por ordem na casa alheia – essa
era a velha mania mais querida da Europa hoje invadida pelos homens sem alma
que não são nem ingleses nem indianos, nem britânicos nem paquistaneses
trabalhando nos empregos de terceira classe para cidadãos de quinta, na
Inglaterra velha como o escárnio.
“Ah, meu caro! Se ele houvesse feito
apenas um gesto, antes de partir”...
Eu gosto — ainda — do tom conradiano
típico, tão antiquado em meio às frases diretas, pronunciadas entre chicletes,
por moças de botas de couro falso. Às suas frases entrecortadas podem ser atribuídos
os mais obscuros significados. Suspeitas indefinidas se elevam, mas se rebaixam
pelo levantar de uma linha tênue de admiração mal sugerida, numa narrativa escrita
para ser um pouco confusa (não muito) no início, depois dramática e, por fim,
triste como uma despedida no mar.
Não sei se fui claro, mas aludo à solene
enfatização de culpas vagas que disputam com a confiança (nunca inteiramente
confirmada) na alma intimorata que — ah — é uma criação da dúvida, não? Quem
nos cativa não é sequer essa “alma” indecisa, ou semi-velada sobre a linha
d’água de romances que quase adernam sob o peso das pausas — aquelas
responsáveis pelo fascínio dos meios tons usados por quem recorda (“não muito
bem, meu caro”) uma visão borrada pela chuva, entre pausas calculadas enquanto
o narrador acende um charuto e lança o fósforo para trás da cadeira de vime
trançado.
Conrad escreveu histórias que não
são verdadeiras histórias sobre heróis que não são heróis autênticos — como
Lawrence. A anotação de Storrs parecia se lançar como o pirilampo desse
fósforo, para trás, na noite africana em que Casement também afirmara, sem mais
preâmbulos, que “W”, “X” e “Y” eram espiões em Saint James [...]
*
Malangatana Valente Ngwenya (moçambicano, 1936-2011). Transcendências (s/d) óleo. 1,25 x 1m
LÍNGUA DE CÃO
Eduardo Quive
Já não é carro cobrador de impostos
Nós descolonizámo-lo.
Já não é terror quando entra na povoação
Já não é Land-Rover do induna e do sipaio.
É velho e conhece todas as picadas que pisa.
É experiente este carro britânico
Seguro aliado do chicote explorador.
Mas nós descolonizámo-lo.
No matope e no areal
Sua tracção às quatro rodas
Garante chegada às machambas mais distantes
Às cooperativas dos camponeses.
Entra na aldeia e no centro piloto
Ruge militante nas mãos seguras do condutor
Obedece fiel a todas as manobras
Mesmo incompleto por falta de peças.
- Descolonizámos o Land-Rover (…)
In: Descolonizamos o Land-Rover, Albino Magaia, poeta moçambicano
E começo assim este meu pacato discurso, como um
verdadeiro assimilado e não falante da língua dos ma-Changana, ma-Ronga e
outras etnias que faz de nós não mulungos,
esta cor branca que nos torna(rá) gente nesta terra.
Começo assim este devaneio que me faz lembrar de uma
pergunta que me é frequente: qual é a minha língua materna?
I
A
quem disse-me que língua materna é aquela que nascemos e nos é ensinada logo a
primeira, por outras palavras, é a primeira língua que falamos.
II
A
quem disse-me que língua materna é aquela que me foi ensinada por minha mãe.
Aquela que quando ela, a minha mãe, quando queria que me dirigisse a ela, a
usasse.
III
A
minha mãe é ma-Changana, por outras palavras, a minha mãe, nasceu em
Chicumbane, distrito de Xai-xai, província de Gaza, sul de Moçambique.
IV
Nunca
se quis saber, mas vou dizer, o meu pai é também ma-Changana, em outras
palavras, o meu pai, nasceu em Novungueni, local onde graças aos heróis
tombados, e como marca da descolonização (o que tem a ver Novungueni com o
colono?) ganhou o nome de 3 de Fevereiro (dia dos heróis moçambicanos).
V
E
eu? Eu nasci na Matola, província de Maputo e cá vivo. Se sou de Maputo? Bem,
no meu bilhete de identidade vem “natural de Maputo”. Mas voltemos à questão:
qual é a minha língua materna?
VI
Na
verdade a primeira palavra que disse (ou que gostaria de ter dito) quando
comecei a falar, foi “mamã”! E mamã que língua é?
VII
Volvidos
bons exercícios do “mamã” fui dizendo outras coisas, como “quer água”, “quero
comida”, “quer dormir com papá e mamã” e tantas outras palavras em língua
portuguesa como minha mãe ensinava assim como os meus irmãos mais velhos e meu
pai.
VIII
Saí
a rua (a minha rua chamava-se rua “O”, agora, é Av. Mártires da Machava, outros
heróis moçambicanos que tomaram lugar), brinquei com Netinho, Simone, Nina,
Helena, Djossefa, Lulu, Florêncio entre outros. Todos eles, expressavam no
moderno xi-Ronga misturado com xi-Changana, afinal, Maputo é terra dos
ma-Rongas!
IX
O
que sei é que a segunda língua, aquela a que os meus amgiso falavam, os meus
irmãos disseram-me que era Dialecto. E quando a minha mãe me ouvia a falar, deva-me
uma tareia dizendo “não fala a língua de cão”. Aliás, quando descobriram que eu
ia falando alguma coisa daquilo, proibiram-me de sair de casa.
X
Quando
comecei a estudar História (5ª classe) no capítulo que falava da dominação
colonial portuguesa em Moçambique, vi que uma das formas dessa colonização era
fazer com que os moçambicanos abandonassem a sua cultura, a tal “cultura de
selvagens” e por conta disso, as línguas (como muitos outros hábitos culturais)
foram proibidos e até definidas como a principal barreira para a nossa
civilização. Por tanto, o xi-Changana e outras línguas nativas passaram a ser
conhecidas como línguas de cães e, como tal, não podia o Homem, tido como único
animal racional, falar.
XI
A
minha mãe tal como outras mães que sabem “o que custou a liberdade” teceram que
só conhecendo o Português é que se podia ser gente na sociedade. Realmente isso
é um facto, descolonizado que foi o Português, já no Pós-colonial que vivia-se
(ou vive-se) em que ele foi revogado como língua oficial, era de capital
importância massificá-lo e fazer com que todo moçambicano o falasse.
XII
Voltando
a questão: qual é a minha língua materna? Bem, volvidos anos de lá até cá,
aprendi que embora tenha falado a primeira o Português, ele já mais será a
minha língua materna. A minha língua materna é o xi-Changana, essa língua de
cão que os meus ancestrais, os vovô Txutxululu, Gutleia, Bovane, Muntimuni,
Injuasse, Nlhevo e Nambita, este último meu chará de tradição, falaram. E
aquela que desde ao ventre da minha mãe, me foi ensinada e hoje, falo com
orgulho de poder partilhar o que sou com outros povos, ciente de onde venho.
XIII
Hoje,
aliás, mesmo o Governo está ciente da importância das línguas nacionais ou
línguas nativas, tanto que já está em implementação o ensino bilingue em todas
escolas primárias.
XIV
Em
jeitinho de conclusão, posso (ou podemos) dizer que só agora, com essa
consciência, em mim (como pode ser em qualquer cidadão moçambicano), é que
ultrapassamos o período pós-colonial em Moçambique. Período em faltava que nós,
nos descolonizasse-mos de nós mesmos.
*
*
Colagem de Cristina Couceiro (portuguesa, contemporânea)
PEQUENAS MEMÓRIAS ALIENADAS
Roberto Lima
Eu, que hoje entendo muito pouco de
quase nada, naquele tempo já não entendia muito de muita coisa.
Usava calças-curtas e cantava o hino
nacional na escola, todos os dias, antes do começo das aulas.
Era um menino católico - como todos
os outros - e às vezes emprestava minha voz a um Padre Nosso meio
desafinado, capenga, naquele país pré-Edir Macedo, pré-Robério de Ogum.
Eu não sabia melhor.
Todo sete de setembro eu desfilava na
avenida - como um mestre-salas mirim - junto com uma legião de
soldadinhos de carne e osso ao som de marchas militares e outros baratos afins.
Às vezes um tanque nos servia de
carro alegórico, e aquilo era imponente e intimidador.
No palanque, homens com estrelas nos
ombros, roupas engomadas e sapatos lustrosos sorriam.
No rádio de ondas curtas, Dom e Ravel
davam a saber que aquele era o lugar dos patriotas.
"Eu te amo meu Brasil, eu te amo
Meu coração é verde, amarelo, branco
e azul anil
eu te amo, meu Brasil, eu te amo
ninguém segura a juventude do
Brasil".
A juventude, eu não sei, mas a
infância brasileira fedia no escuro.
Duvido de que pelo menos uma minoria
dos meus contemporâneos tivesse consciência do que se passava no país
daqueles dias.
Naquele interior do interior do
Brasil, eu era pequeno demais para saber que os descontentes desapareciam em
porões.
E que os contentes eram os homens
vestidos de verde-oliva.
E que eles eram truculentos,
couraçados, trucidantes...
Eu não sabia que o País do Futuro, no
presente, não passava de mais uma republiqueta das bananas na America Latina.
Eu era um passarinho engaiolado e não
sabia.
Infelizmente, daquela minha turma de
meninos ninguém deu em grande coisa.
A minha geração foi uma das mais
sacrificadas desde a colonização do país.
Somos a chamada geração perdida, a
que descobriu o caminho da emigração e despachou brasileirinhos e brasileirinhas
para os quatro cantos do mundo.
Nós nos instalamos entre os
aborígenes da Austrália, entre os malditos chicanos do Texas e os brasiguaios
de algum lugar mais dentro do que fora do Brasil, ali pelas cercanias de
Assunção.
Somos os subalternos, os estafetas,
os contínuos.
Somos os decasseguis, os brasucas, os
expatriados.
Somos aqueles que batem continência,
os que abrem as portas dos carros e dos hotéis; e os que guardam o veículo e a
casa alheia, os que se conformam com a sorte menor.
Somos os que lavam os pratos. Os que
limpam o chão.
Somos os que lavam os cadáveres nos
necrotérios.
Os que passeiam os cães das madames.
Os que servem à mesa.
Os que cozinham para as bem nascidos,
e muitos destes vieram tão depois de nós.
Excessões?
É claro que as há, como em toda regra
criada pelo homem-lobo-do-homem.
Mas não somos páreo para os de antes,
nem para os de depois da década de 1960.
Nós somos os de durante.
Somos os zés e marias-ninguém deste
gigante fincado na América do Sul.
No grande esquema das coisas, somos
uns desinfluentes quase sempre cheirando a suor e picotando o cartão de ponto
em algum lugar.
A minha geração nasceu condenada a
ser menor.
E isto, até outro dia, eu ainda não
sabia.
*
José Clewton do Nascimento
Podemos
discutir o tema “pós-colonização”, no âmbito da história do Brasil, sob uma
diversidade de aspectos. O mais comum, a meu ver, relaciona-se à condição de
autonomia (ou não autonomia) do país, sob os pontos de vista da economia, da
política, da cultura, etc.
Não
tenho dúvida que esses aspectos serão abordados por outras contribuições a
serem dadas nesta edição. Não tenho dúvida também que acabarei, nas minhas
palavras e nos meus desenhos, entrando também nestes assuntos. Alerto,
entretanto, que a minha “especialização” no assunto História da Arquitetura e do Urbanismo, com ênfase em na
“especialização da especialização” Patrimônio
Edificado, me leva a pensar e escrever sobre o tema, a partir do grande
legado que o nosso colonizador, oriundo lá da Península Ibérica, nos deixou: um
vasto conjunto edificado que, seguindo uma vasta discussão acerca das
atribuições de valores conferidos, são partes integrantes dos nossos bens culturais.
(Neste
momento, vejo a necessidade de abrir um grande parêntese para tecer a seguinte
consideração: o fato de tratar do assunto de maneira específica, não significa
que abro mão do caráter universalista: enquanto escrevo essas linhas, retomo em
minha memória, o fantástico personagem Palomar,
de Ítalo Calvino, e suas tentativas de compreender e discorrer sobre as grandes
questões universais, a partir das suas observações acerca das situações
vivenciadas pelo seu cotidiano...).
O
que trago como contribuição nestas linhas, é uma proposta de se discutir o "pós-colonização" a partir do
"legado deixado pelos portugueses no Brasil, que hoje constitui um vasto
conjunto de nosso patrimônio cultural (e falarei especificamente do conjunto
edificado). A discussão sobre assunto girará em torno de dois aspectos: o
primeiro, diz respeito ao que que motivou o reconhecimento desses bens como
patrimônio cultural (os primeiros estavam relacionados aos fatos notáveis,
memoráveis, excepcionais de nossa história, que necessariamente estavam
vinculados ao processo de colonização portuguesa, que impôs a sua perspectiva
de vida no Brasil, instituindo e construindo igrejas, cadeias, engenhos, etc;), o
segundo, trata de trazer alguns exemplos que buscam dar outros sentidos, outras
atribuições de valores a esse reconhecimento dos espaços como patrimônio
cultural, ressignificando-os.
Abordarei, especificamente, dois casos: o primeiro, é o restauro
do solar do Unhão em Salvador, concebido pela arquiteta ítalo-brasileira Lina Bo
Bardi. O conjunto edificado é um dos exemplares mais significativos da unidade
de produção canavieira, atividade responsável pelo alto grau de desenvolvimento
econômico da região do Recôncavo Baiano, da qual Salvador foi a “cabeça”. O
conjunto, portanto, identificado como símbolo do poder econômico do sistema
canavieiro, foi reconhecido como espeço representativo de nosso Patrimônio
cultural.
O restauro concebido por Lina, ressignificou o espaço “do poder”,
em espaço de produção cultural, incluindo museu e uma espécie de escola de
"artes e ofícios", e ainda é utilizado como espaço para apresentações
musicais - como é o caso da tarde de jazz e blues, aos sábados, no largo da
capela que faz parte do conjunto. A própria capela teve seu espaço
ressignificado, e compõe também o grupo de espaços destinados à exposição.
RE (ou DES) territorialização 1 – Solar do Unhão: antiga casa-sede do engenho, hoje área de
exposição do conjunto do Museu de Arte Moderna, Salvador/BA
|
|
RE (ou DES) territorialização 2 – Capela e Largo do conjunto do Solar do Unhão, Salvador/BA.
Espaço do Jazz e Blues, aos sábados.
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O segundo caso, é o da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, no
distrito de Almofala, Itarema, Ceará: a capela, localizada em terras povoadas
por indígenas (os famosos tremembés), foi construída no intuito de possibilitar
a catequização dos índios da região, ou seja, a existência da edificação revela
a lógica impositiva portuguesa, via religião, de firmar território e destruir
os empecilhos à sua política colonizadora. o edifício foi tombado, levando em
consideração a presença portuguesa no território brasileiro. No entanto, o que
deveria se tornar um marco dessa lógica impositiva para os tremembés, passou,
na verdade a ser um marco (de extremo valor simbólico) na demarcação de sua
territorialidade. Para exemplificar essa questão, refiro-me ao uso do espaço da
praça contígua à Igreja, como espaço que os índios geralmente usam (inclusive
em datas festivas) para realizarem a dança do torém, um dos principais legados
da cultura tremembé.
RE (ou DES) territorialização 3 – Igreja de Nossa Senhora da Conceição, Almofala, Itarema / CE. Construída
o intuito de catequizar os índios tremembés, atualmente, é incoproporada
pelos indígenas como espaço referencial de definição de seu território.
|
QUATRO POEMAS DE LARA
AMARAL
Cabimento
Pelo
que querem de mim
me
desconheço
É
uma junção de passos
em
linhas paralelas
o
corpo fundindo-se a bases
de
pirâmides
quadrados
enquadram mentes
em
transe
Meu
jeito trôpego
mandam
logo para o espaço
concêntrico
de ângulos
compassados
Pergunto
o que há de errado
em
desamparadas
geometrias
Encaram-me
com seus olhos
losangulares
dão-me
mais de quilômetros
de
fitas métricas
e
respondem com suas vozes
trianguladas:
“Meça
aí sua quilogonal
insignificância”
Laminados
rodeados de enredos
subtitulados
que os outros nomeiam
apontam, sussurram
aos ouvidos adjacentes
repletos de círculos de fogo
em andaimes
hasteados
dizem com o que se parecem
ao que aludem
detalham cada linha
que os amarram
a horizontes
desnorteados
envoltos em tantos efeitos
jamais saberão dizer
na real
o que o outro é
Calma.ria
Como ambicionam essa paz truncada
de nuvens que não saem do lugar
com folhas que não varrerão o asfalto?
[Há ventania demais cá dentro
de onde se olha a alvorada
raspar a vidraça e nem chiar]
Empalhados ali, na sala de estar
[onde as crianças não correm
não podem esbarrar
nas velas de cristal
no abajur ancestral
nos porta-retratos
preto e brancos e
monótonos]
tomam chá fervente
na sala temperatura ambiente
queimam a língua com suas caras
de paisagem
enquanto olham lá fora
a frente fria
brevemente esboçam
por baixo de seus casacos
sem pele
um arrepio que não
lembram mais.
Da
janela transversal
da parede, ver
o universo girando
pelo buraco
ouvir, pelas vibrações da terra
a mensagem
os sentidos acionam-se
por pequenas centelhas
porque o que mundo dá
é nada para entender
muita miséria e
inacabáveis
sinais de fogo
sem combustão
para absorver
*
NÃO
EXISTE O PÓS-COLONIAL!
Jota Mombaça
paranóia
e náusea entre os povos civilizados
O Pequeno Albert -
que erra entre cômodos,
prepara armadilhas
e busca a janela -
fecha a porta. Mil
ratos, e coelhos
e bonecos de pelúcia
branca
o habitam. Avesso a si
mesmo,
o menino dorme
com olhos neuróticos.
O Dr. Aubrey Levin
decepa o sexo de órfãos
saudoso
ao rememorar The good old days
in South Africa
quando o Apartheid.
Depois do Estudo de
Milgram,
não se soltou o botão.
Bolsonaro, Conde de
Gobineau,
Adolf Hitler
e outros iluminados…
Educação Behaviorista,
Eugenia,
Assepsias Mentais
e outras faxinas…
Os cães de Pavlov somos
nós.
biopolícia
NÃO
ME PEGARAM, AMARRARAM E ENFIARAM A MINHA CABEÇA N’ÁGUA GELADA POR REPETIDAS
VEZES; NÃO DERAM CHOQUES EM MINHA GENITÁLIA OU NUMA FERIDA DE BALA QUE EU POR
VENTURA TIVESSE; NÃO ESFREGARAM SAL EM MEUS OLHOS; NÃO ESTUPRARAM MINHA MULHER
GRÁVIDA EM MINHA FRENTE; NÃO ASSASSINARAM MEUS COMPANHEIROS; NÃO ENFIARAM
AGULHAS EM MINHAS UNHAS; NÃO ME ARRANCARAM DENTES A ALICATE; NÃO ME CURRARAM
COM UMA MESA DE EVISCERAÇÃO; NÃO ME CHICOTEARAM; NÃO ME LEVARAM À RODA DO
DESPEDAÇAMENTO; NÃO ME DEITARAM NO BERÇO DE JUDAS; NÃO ME LEVARAM À DAMA DE
FERRO; NÃO ME FURARAM COM O GARFO DO HEREGE; NÃO TOCARAM FOGO EM MIM.
me
mataram por dentro
não existe o pós-colonial
no
dia 10 de setembro de 2012, às 14:30, fui ao fórum - prédio imponente,
localizado em algum ponto da cidade aonde é praticamente impossível chegar de
ônibus - para que um juiz determinasse uma pena relativa ao meu hábito
maconheiro. portas giratórias, elevadores numerados, ascensoristas, corredores,
o nada das antessalas... a arquitetura organiza a cena: na sala-de-audiência,
microfones apontados para todas as direções, câmeras filmando, uma cadeira no
centro da arena, esperando sempre e com sede o próximo rato a cair na ratoeira.
era eu, obrigado ao silêncio (que não é o silêncio selvagem, mas o silêncio omisso)
e a calçar tênis, até os olhos calados. o juiz não me olhou uma vez sequer,
somente para a advogada - que me representava. era eu, sujeito de um crime sem
vítima, anulado, fichado, exposto às acusações e às defesas de outrem.
fui
condenado a três meses de tratamento.
nunca
terminei de ler O Processo; jamais assisti inteiro o filme Bicho de Sete
Cabeças.
recebi,
hoje, um e-mail com um processo administrativo anexado. a ufrn, onde estudo,
também achou por bem que eu sentasse no banco dos réus. não vivi o que aqueles
papéis descrevem, não da forma como descrevem - papéis timbrados, siglas,
assinaturas: são documentos oficiais. mas com que oficialidade documentam a
memória?
o
vivido não cabe em papéis timbrados (nem mesmo na memória cabe).
não
sei em que isso pode dar. a minha voz não cabe nos gabinetes.
as
pessoas que moram em ocupações públicas no centro do rio de janeiro, quando
forem expulsas pela polícia de choque em nome sabe-se lá de quê ou quem, não
terão para onde ir. de certo que já aprenderam a hackear a cidade, por
sobrevivência. a imensa classe média proletária brasileira, confortavelmente
instalada em apartamentos parcelados (os endividados são prisioneiros
políticos), poderá, quando for a hora, comprar todos os imóveis que a
especulação imobiliária conseguir construir às costas do lumpenproletariado.
no
Quilombo Rio dos Macacos, os que vivem vivem em estado de sítio. à marinha
brasileira interessa que desapareçam, da forma como conseguirem, ou morram o
quanto antes.
em
Altamira não há leitos.
pescadores,
agricultores, ribeirinhos e moradores das cidades impactados pela usina;
guerreiros Araweté, Assurini do Pará, Assurini do Tocantins, Kayapó, Kraô,
Apinajés, Gavião, Munduruku, Guajajara do Pará, Guajajara do Maranhão, Arara,
Xipaya, Xicrin, Juruna, Guarani, Tupinambá, Tembé, Ka’apor, Tupinambá, Tapajós,
Arapyun, Maytapeí, Cumaruara, Awa-Guajá e Karajas preparam-se para a guerra
contra Belo Monte. o governo do país parece cada vez mais obstinado a dar cabo
de seu genocídio. os índios armam flechas em seus arcos, brandem lanças e
facões contra o holocausto que os estados unidos do Brasil ameaçam perpetrar em
nome da "ordem" e do "progresso".
alguma
coisa está fora da ordem e não são os caveirões, as urnas eletrônicas ou as
usinas hidrelétricas; a polícia, as empreiteiras e demais indústrias
beneficiadas pela destruição da amazônia, os proprietários do imenso lixo
imobiliário abandonado nos centros das capitais urbanas (que agora, na esteira
dos processos de gentrificação e higienização, tentam reaver)... os
biocacetetes policialóides cumprem a ordem; os bancos e suas telas negras
cumprem a ordem; as famílias e suas taras presas cumprem, também, a ordem. quem
esperou que a democracia representativa fosse conseguir aperfeiçoar de maneira
tão elegante o projeto das ditaduras? os mártires mortos pelos generais
brasileiros, os torturados, desaparecidos... quem serão os próximos?
os
caveirões não irão trazer o brazil à paz.
auschiwitz
quer dizer alagadiço
remove teu comboio,
salu,
de dois ou três
escravos nordestinos.
que eu voume embora
para sá viana.
em 1992 eu era um saco
brilhante de lixo no jardim gramacho,
der Muselmann sob o sol
de satã.
faça uma topografia do
nosso momento über crack!
obture minha paisagem
desolada. confine-a.
a canção inexprimível
da gulag, o desterro do baldo,
as palavras no
sumidouro, uma literatura de diásporas,
mas tu, ellena… “o teu
canto mais parece um silêncio”.
As imagens que ilustram o texto acima, são esculturas do chinês Liu Xue (1983), da série "We are the world"/ Nós somos o mundo [Cf.: http://blog.artron.net/space.php?uid=370391].
ENSAIOS
POESIA EM TEMPO DE
CÓLERA
Ronald Augusto (*)
Diante do
genocídio judaico perpetrado pelo regime nazista em escala industrial, o
filósofo marxista T. W. Adorno disse – talvez não exatamente nesses termos –
que depois de Auschwitz, seria impossível escrever poesia.
Há, me parece, uma dose de eurocentrismo implicada nesta afirmação. Pois
ela reforça uma constatação que se pode fazer a respeito do narcisismo da
civilização moderna e tecnológica, a saber, a de que graças aos muitos meios de
representação surgidos no século 20 tendemos a superdimensionar todos os
eventos ocorridos em seu interior. Eles se tornam como que “mais” reais, ou
mais pertinentes para a nossa disposição moderna, porque estão documentados
para além da memória verbal escrita. O filme e a fotografia dos acontecimentos
têm o incômodo poder de substituí-los. A memória e a recepção tornam-se mais
frias e consensuais à medida que a realidade vai sendo capturada de modo
peremptório por esses e outros meios. Entretanto, antes de continuar, abro
parênteses para dizer que não se trata aqui de negar o acontecimento do crime
nazista, isto é, o comprovado genocídio do povo judeu – não obstante o auxílio
da eloquência da cinematografia usada para torná-lo torpemente memorável –,
pelo contrário, essa tragédia, tal como outras em que populações inteiras
desapareceram e ainda desaparecem, não pode passar em branco. Assim , o
tema de fundo deste texto que submeto à reflexão do leitor se restringe tão-só
a problematizar o que há de espetaculoso ou de efetivamente crítico na sentença
adorniana. Fecho parênteses.
Mirando outros eventos do passado – digamos que por um viés politicamente
correto, para o desespero de alguns –, poderíamos parafrasear a frase de Adorno
na análise, por exemplo, do massacre dos povos indígenas levado a efeito por
espanhóis e portugueses na conquista do novo mundo. E a lógica da mesma frase
se aplicaria à história da escravidão negra e à devastação étnica e cultural do
continente africano – e que persiste até hoje. Como dar crédito à poesia depois
da passagem desse verdadeiro “carro da miséria” por sobre tantas vidas?
Contudo, todos esses dramas passaram em brancas nuvens, ou foram jogados no
fundo do atlântico. A corda rebentara do lado mais fraco. Porque, neste caso,
as vítimas eram os “outros”. Os poetas não estavam atentos às impurezas da
poesia. Os Lusíadas, de Camões,
representam o elogio épico dessas empresas imperiais, cujo processo
civilizatório não esconde um apetite sicário.
Lances históricos muito remotos, às vezes falseados, às vezes
escassamente documentados, nos são antipáticos, ou seja, temos dificuldade de
nos identificar com eles. Por outro lado, o acervo do passado é compilado e
organizado de maneira a nos convencer de que é uma “perda de tempo” dispormos da
nossa liberdade de dúvida questionando, eventualmente, as versões dos
acontecimentos que os compêndios acadêmicos nos oferecem em edições tão
ricamente ilustradas.
Muito se discutiu a respeito da afirmação polêmica do filósofo alemão.
Aos que nunca foram grandes apreciadores de poesia, a máxima adorniana tem o
condão de ser um golpe de misericórdia contra os impotentes poetas, esta
espécie em extinção.
Outros se rejubilam de provar o contrário, isto é, que Adorno se precipitou,
que foi severo demais com a “mãe” de todas as artes. Eles argumentam que a
poesia ainda tem muito a dizer, pois é justamente quando o homem parece ceder
ao seu impulso de morte e destruição, retroagindo à condição bárbara, que ela
se faz mais necessária: a poesia se eleva como o derradeiro reduto do humano. A
“infelicidade” da visão de Adorno não se sustentaria para os que suportam a
noção de poesia como lenitivo, como bálsamo divino às aflições da finitude,
transcendência através da palavra fundadora do ser.
Mas, para além das mistificações de um lado e de outro, o importante é
considerar que talvez T. W. Adorno quisesse dizer que, após aquele marco
histórico, a poesia (linguagem que, a partir de sua lógica interna, e como
qualquer outra, pretende renomear o mundo) começava a entrar em crise. E a poesia, como
discurso metalinguístico, autocrítico, enfim, como linguagem engendrada sobre a
consciência de que “palavra e coisa jamais serão a mesma coisa” (SILVESTRIN, 1994,
p. 28), não poderia ficar indiferente ao que se passava a seu redor. O tempo
exigia outros paradigmas poéticos, e outras filosofias.
O filósofo acertou: uma concepção de poesia – já bastante retardatária
poder-se-ia dizer – foi enterrada junto com os mortos de Auschwitz. Hoje, a
poesia parece estar mais atenta aos seus limites. E mesmo a sua propalada
inutilidade, em contraste com o mundo da mercadoria, pode ser interpretada como
um sinal de distinção ou de resistência – ainda que involuntária. Os poetas
sabem da dificuldade de representar um mundo cada vez mais cinematográfico e
dependente dos media. A subjetividade e a esfera privada se dissolvem
frente à obsessão generalizada de expor suas entranhas às luzes do espetáculo
público.
Não há mais
sentido para a poesia do heroísmo, porque “a febre digital/ das transferências
bancárias” (SALVADORI, 2004, p. 15) emasculou o que ainda restava entre nós de
um “eco épico”. O mundo moderno e contemporâneo sepultou seus guerreiros e seus
celebrantes. Estamos condenados, ao que parece, à idade da impertinência da
poesia.
Referências bibliográficas:
ADORNO,
Theodor W. Minima Moralia – reflexões
a partir da vida lesada. Rio de Janeiro: Azougue Editorial Ltda., 2008.
SALVADORI,
João Angelo. Teleférico. Porto
Alegre: Ame o poema editora, 2004.
SILVESTRIN,
Ricardo. Palavra mágica. Porto
Alegre: Massao Ohno editor/Instituto Estadual do Livro, 1994.
(*) Ronald
Augusto nasceu em Rio Grande (RS) a 04 de
agosto de 1961. Poeta, músico, letrista e crítico de poesia. É autor de, entre
outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992),
Confissões Aplicadas (2004), No Assoalho Duro (2007), Cair de Costas (2012) e
Decupagens Assim (2012). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blgspot.com
e é diretor associado do website www.sibila.com.br
a
polêmica tropical entre Veloso e Schwarz
Denise Freitas*
Recentemente
publicada pela Companhia das Letras, a reunião de ensaios e entrevistas de
Roberto Schwarz, intitulada Martinha
versus Lucrécia, tem suscitado releituras que, seja pela controvérsia, seja
pelas agitações provocadas instigam algumas notas. O alarido se deu em razão do
ensaio “Verdade tropical: um percurso
de nosso tempo”, nele, encontra-se uma análise à autobiografia de Caetano
Veloso, Verdade tropical, publicada
em 1997. Em linhas gerais, as críticas ao ensaio demonstram certo desatino
quando acusam o autor de cometer equívocos e incoerências intelectuais que
somente interpretações forçosas e calcadas na irreflexão seriam capazes de
alcançar. A pressa na “defesa” ao músico tropicalista parece dar o tom aos
comentários relacionados ao tema. No entanto, a atitude prestimosa não se
ajusta à leitura do ensaio de Schwarz, que, em toda sua extensão não enseja manifestações
desse viés simplesmente porque não se manifesta através de ataques.
De
maneira bastante pertinente, Roberto Schwarz reflete a certa altura do ensaio
(e utiliza semelhantes esquemas interpretativos em diversos momentos do texto)
sobre a postura daquela geração “a volta de 1964” (SCHWARZ, 2012, p. 52) e que,
conforme a descrição de Caetano Veloso experimentaria o “direito de imaginar
uma interferência ambiciosa no futuro do mundo” (SCHWARZ, 2012, p. 74); conforme
a conclusão do crítico, o sentimento da época, assim apresentado, indica uma
“ambição de fazer e acontecer na arena internacional – em lugar de questionar
essas aspirações elas mesmas” (SCHWARZ, 2012, p. 74). Aqui, me parece, evidencia-se
a diversidade discursiva, ou mesmo a polifonia ideológica contidas no
depoimento de Caetano Veloso, contudo, perceber nesse depoimento, mesmo que
antecipadamente mais identificável com a esquerda,
indícios de premissas àquela época tidas como de direita não constitui imperícia da análise de Schwarz. É
importante lembrar que interferências dessa ordem, bem como ambiguidades na
formulação de discursos identitários serão perceptíveis em qualquer contexto
histórico a que se dedique atenção, pois nada há estanque; por fim, em leituras
como essas, há muito tempo, não vai acusação alguma.
Mesmo
seguidas por qualificativos como “inglório” (SCHWARZ, 2012, p. 110), as
observações de Schwarz aos vestígios do discurso “dos vencedores da Guerra Fria”
(SCHWARZ, 2012, p. 109) em determinadas passagens do relato de Caetano estão
seguramente distantes da quase condenação histericamente alardeada por Nelson
Ascher em seu texto “O crítico justiceiro” publicado, na revista Veja, mais a título de subserviência ao
astro pop dos recôncavos tropicais, do que para sublinhar panoramas de
divergência analítica. Numa postura sem o frouxo dos aplausos fáceis, Schwarz
deixa entrever sua discordância, não apenas com o que pôde perceber como
resquício de uma ideologia vencedora
e autoritária, como também evidencia
os limites daquilo que considera esquerda
e direita. Tal postura não compromete
sua posição crítica – como sugerem algumas resenhas sobre o tema – já que a
obra em análise não se configura enquanto literatura somente. Pretendendo-se
relato de uma experiência que marcou um período da história brasileira (em
todas as suas dimensões, não apenas política), Verdade tropical deve sim ser observada em razão dos próprios
conceitos aos quais se vincula, ou aos quais consegue nomear. Da mesma maneira,
Roberto Schwarz, apontando a obra em análise como quase romance, não atua de maneira equívoca ao demonstrar sua
percepção da desfaçatez camaleônica[1]
de Caetano Veloso já que se trata (a obra) de depoimento e, portanto,
legitima-se em outros territórios além daqueles propícios ao fazer literário.
Ainda que, no início do ensaio, o livro de Caetano seja anunciado como “romance
de ideias” ou “prosa realista” (SCHWARZ, 2012, p. 52), Schwarz rapidamente lhe
institui a legenda de história
tropicalista e de crônica da geração
à volta de 1964, com essa medida, não perde de vista a obviedade contida na
narrativa de Caetano Veloso, e aparentemente negligenciada por grande parte dos
críticos da crítica, sendo depoimento, pode ter reconhecidas, ou não, suas
qualidades estéticas, mas não pode ser considerado sem a dimensão histórica que
encerra – e nisto Schwarz acerta, pois evidencia essa perspectiva.
Além
disso, o autor do ensaio reconhece a atualidade de onde fala; sem reservar
espaços a afecções, seu estudo ressuma um Brasil sem revolução, com a
experiência de vinte anos de governo ditatorial, e amargando quase trinta anos
de impunidade aos desmandos e violências praticados por esse governo
inconstitucional – mesmo tendo assistido a uma significativa sucessão de
governos filiados ao ideário de oposição àquele período. De seu texto infere-se
a falta, na equação operada por Caetano referente à época do Tropicalismo, de
atualização ou de reformulação dos sentidos atribuídos à esquerda que – assim como os atribuídos ao seu lugar de oposição, a
direita – acabaram se mostrando
insuficientes para a nomeação dos fenômenos experimentados naquele período e
nas décadas subsequentes.
O
matiz opositor explicitado no título do livro ressurge na faceta dualista
utilizada para a abordagem dos fenômenos destacados ao longo do ensaio. Resta
saber em que medida essas ponderações de caráter dualista poderiam ser
visualizadas a partir de outra representação que não a da oposição. Isto é,
seria legítimo esperar que se negligenciasse a perspectiva da dualidade numa abordagem
dedicada ao relato dessa experiência artística (o tropicalismo) estreitamente
vinculada a um período histórico no qual praticamente a totalidade das iniciativas
de reflexão sobre aquele momento seria imediatamente transposta ao cenário da
violenta disputa político-ideológica?
Recuperando
a Marc Bloch sua assertiva de que “para
o desespero dos historiadores, os homens não têm o hábito, a cada vez que mudam
de costumes, de mudar de vocabulário” (BLOCH, 2001, p. 59) é possível que tenha
faltado, tanto a Caetano Veloso – na fatura de seu relato, Verdade tropical – quanto
à boa parte da crítica dedicada ao ensaio de Schwarz alcançar uma outra
dimensão aos vocábulos envolvidos nas legendas esquerda e direita. A
partir daí, a pertinência de uma ponderação na qual,
considerando limites, contradições e precariedades extraídas à leitura de Verdade tropical, a interpretação de
Schwarz (e toda interpretação é uma possibilidade) estivesse mais ocupada em
tornar nítidas as ambivalências discursivas que passaram a tomar o lugar
daquela dualidade cujos agentes até então haviam pretendido delimitar com
nitidez, do que em acusar ou condenar suas manifestações. Afinal, o próprio
Schwarz considera que uma imagem totalizante da esquerda da época não
corresponderia à realidade. Com efeito, as incompatibilidades ideológicas descritas
por Caetano estariam mais bem dimensionadas à medida que relativizassem os
diferentes componentes daquele grupo cuja amplitude não conseguiria escapar à
diversidade.
Enquanto se sobrepõe, no emaranhado de
releituras seguidas à publicação de Martinha
versus Lucrécia, uma incoerente salvaguarda à imagem do músico e escritor, ele
mesmo, embora escape ao recalque daquela crítica protecionista de plantão,
tropeça na infantilidade incompatível com as representações que Roberto Schwarz
entrelaça em sua análise, e faz birra numa entrevista em que, para concluir suas
distorções, apresenta o descabido argumento de que Schwarz teria chegado tarde
para a crítica de seu livro, reproduz assim o lugar-comum, e vazio, do
imediatismo. Ora, se o tempo comprometesse a importância de qualquer análise ou
reflexão, não passaríamos de felizes (?) desmemoriados, sem acesso aos prazeres
da tradição, que em seu conjunto é reivindicada a cada leitura.
[1] Numa de suas resenhas, Euler de França Belém sinaliza uma incoerência teórica de Roberto Schwarz na forma como problematiza a narrativa de Caetano Veloso, negligenciando alguns de seus principais componentes, quais sejam, relato memorialístico e depoimento.
Referências
bibliográficas:
BLOCH,
Marc. Apologia da História, ou, o Ofício
do Historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
SCHWARZ, Roberto.
Martinha versus Lucrécia: ensaios e entrevistas. São Paulo: Companhia das
Letras, 2012.
[*] Denise Freitas nasceu em Rio Grande (RS). Professora, Escritora e Historiadora. É autora de Misturando Memórias (2007); Mares inversos (2010); está entre os autores que compõem a Antologia poética: Moradas de Orfeu (Letras Contemporâneas, 2011); possui publicações em diversas revistas e sites literários, dentre os quais Revista Sibila, Musa Rara, Revista Modo de Usar, etc. Escreve no blog: www.sisifosemperdas.blogspot.com
*
A NOVÍSSIMA POESIA - LISA ALVES
Ignorar o
cheiro dessa maresia – ser tão antidionisíaco.
Fechar o
corpo ao calor dos trópicos.
Cegar-se,
perfurar a íris com versículos e leis.
Atravessar
o instinto, enjaular-se, calar o bálsamo terra-e-água.
Abrigar-se
por signos: crucifixos e ideais.
Eis aqui
um Eunuco.
Filhos de Madalena
Alastra-se um cobertor virótico nesse solo.
Quem dorme não terá mais chance de dizer: “Bom
dia!”
Fazemos nossa parte: vendemos nossas vidas.
Hoje nossas genitálias rendem o prato do dia.
Renascença
Quando a
vida florescer sobre os escombros
de um
planeta demarcado pela bandeira da indiferença
e nossos
filhos não ingerirem o veneno fastfoodiano – renasceremos
como
borboletas em uma metamorfose além de Kafka.
Quando as
fronteiras da Terra forem abertas e exterminarem
essa
falsa cultura made in– confraternizaremos como uma irmandade terráquea.
A América
que conheço não tem nenhum tio chamado Sam.
A América
que cresci foi desertificada por um sonho que não é meu, que
não
é seu e nunca foi nosso.
Nosso
desejo de evolução não pode ser reproduzido por uma indústria.
Nossas
conquistas não podem ser resumidas na capacidade de adquirir coisas.
O único
11 de setembro lastimável foi o de 1973.
A palavra
liberdade não pode ser representada por uma estátua.
Eu não
odeio o Norte – eu odeio a imposições, os embargos, a dominação.
Salvemos
nossa essência – Renascença!
Quadro de Avisos
Há tempo
de chuvas e guarda-chuvas
Há tempo
de secas e tempestades de areia
Há tempo
de sorte e milagres na mesa
Há tempo
de mesmices e singularidades
Os tempos
se conectam, fundem-se no hermetismo da vida.
A criança
de ontem abre o caderno de economia
A mãe sai
as seis e retorna no final da noite
O padre
estuda o evolucionismo
A
indústria que degrada usa selos de sustentabilidade
E
acreditamos em nossas coincidentes diferenças
(usamos o mesmo céu e rezamos a mesma cartilha)
Discutimos
comportamentos, aceitamos as imposições
( o homem mais rico
do mundo continua certo)
Há tempo
de indiferença
Há tempo
de alienação
Há tempo
de injustiças
A
iniciativa privada priva-nos de qualquer iniciativa
O novo é
cativante e nos cativa nas algemas consumistas
Há tempo
de reformas
Há tempo
de mudanças
Há tempo
sem tempo
O louco
escreve prognósticos catastróficos,
mas estamos em tempos de paz
O
capitalismo selvagem é civilizado, domesticado,
mas somos nós que
comemos a ração
costumeira.
Há tempo de pensamentos
Há tempo de inquietações
Há tempo de bandeiras
Há tempo de poesia
Cairá a forma dominante das contradições?
Estaremos em estado de arte?
Haverá a ditadura do livre-pensamento?
Seremos livres?
Drummond avisou:
No meio do caminho tinha uma
pedra...
E a pedra é enorme.
A Marcha
Retirar os olhos ao assistir o surgimento das
chagas.
Prever a queda e aprofundar a cova.
Rasgar as fotografias, queimar os livros e riscar
os discos do Pink Floyd.
Beber toda a panaceia do mundo e testemunhar a
convalescência coletiva.
Rezar novena depois do golpe.
Assinar contratos, brindar com o Mefisto.
Pagar o dízimo e livrar-se das dores de
consciência.
Purificar as mãos, perverter a consciência.
Cantar hinos glorificando personagens fictícios.
Fazer juramentos, dedos cruzados.
Torna-se um vestido, um terno e duas gotas de Chanel.
Comprar fazendas, marcar o gado.
Uniformizar, reformar, restaurar, reerguer antigas
estátuas.
Filmar-se, mostrar os dentes, doutrinar a língua.
DIREITA & ESQUERDA, DESCANSAR!
Entre a sede
e o vício
fico com
a boca estéril
e
o estômago vazio.
Lá fora a
desarmonia
Aponta o
dedo e trama
um novo
bode – totalmente
expiatório.
Eu nunca
estimei os muros
e muito
menos os blocos.
Não
abrigam –
só
apartam.
Há sede e vício nessas veias
paralizadas.
Há dívida de viciado
com a nau traficante.
Movimente a hemoglobina
Oxigene as têmporas
Sanguessuga é a velha
União Europeia
ou o louco Tio
do “Times is money”?
Declarações Moribundas
Éramos
filhos de gerações – que não geravam ações, apenas a experiência de erros que
não deveriam ser repetidos.
Éramos
muitos: fardados, naturalistas, modistas e contra tudo que fosse dito proibido.
Éramos
luz e trevas ao mesmo tempo – e ainda assim ajoelhávamos nas catedrais
espirituais em busca de alguma salvação.
Éramos
príncipes, plebeus e às vezes democratas que sacudiam as ruas com placas e
faixas reivindicando alguma mudança na consciência coletiva.
Éramos
trabalhadores e acreditávamos que a carga horária do dia nos tornaria a futura
elite do país.
Éramos
bárbaros – matávamos por comida e por um pouco de fogo e sexo
Éramos
pré-colombianos, pré-greco-romanos, pré qualquer coisa escrita pela história
oficial. – e ainda tiveram a ousadia de nos catequizar, estuprar e classificar
nosso chão de Brasil Colônia.
Éramos
revolução industrial: fábricas, camponeses em áreas urbanas, favelas crescendo,
densidade demográfica, fome, miséria e falta de saneamento básico.
Éramos
anarquistas, comunistas, populistas e fazíamos reuniões politico-intelectuais
sem ao menos sentirmos no paladar o gosto do feijão requentado. (ou até a falta
do mesmo)
Éramos
padres e madres – rezávamos antes mesmo do sucumbir do sol e em noites enluaradas
éramos insistentemente perseguidos pela voz do Demônio da Luxúria.
Éramos Ladys e gentlemans – frequentávamos as melhores festas, fumávamos charutos
contrabandeados e no final do mês nossos cheques especiais estavam estourados.
Éramos
artistas marginais – escultores, pintores, escritores e compositores. Até o dia
em que a Indústria Cultural levantou uma cerca e transformou as grandes obras
em linhas de produção.
Éramos
leais militares – direita, esquerda, volver! Nossa marcha era conduzida pelo
patriotismo, idiotismo – Fascismo!?
Éramos a
pequena burguesia – cidadãos médios, assalariados, diplomados, comungados –
Conformados!?
Éramos
tudo isso – um bando de ações que viciaram gerações.
***
Um comentário:
Nina, ellenistas e colaboradores,
Número bem estruturado, pela preservação da unidade temática proposta, com artigos consistentes e didáticos ao mesmo tempo [Ronald, Denise, Fernando], além dos bons textos e poemas.
Sem esquecer a bela/feliz escolha das imagens.
Parabéns a todos!
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